The Black Balloon e a adolescência de um irmão de autista

15/09/2022Histórias0 Comentários

Filme ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim conta história de amadurecimento e aceitação do autismo dentro de casa

A poucos dias de completar 16 anos, o jovem Thomas Mollison se sente constrangido ao ter que retirar do banheiro de um desconhecido o irmão mais velho Charlie, que havia fugido de casa trajado apenas com um cueca verde e com sua adorada touca marrom com orelhas de macaco.

A família havia se mudado recentemente para uma conservadora cidade nos arredores de Sydney, na Austrália, onde Charlie sofre bullying dos colegas de escola de Thomas e a vizinhança é incapaz de oferecer compreensão à família. Tudo o que Thomas queria era ter um irmão típico.

A história de Thomas, Charlie e da família deles é contada na comédia dramática The Black Balloon (Sei que vou te amar, na versão em português), lançada em 2008 e ganhadora de dez prêmios da AACTA (Academia Australiana de Artes em Cinema e TV), além do Urso de Ouro do Festival de Berlim, um dos mais reconhecidos do planeta.

Um dos destaques da obra é a atuação da consagrada atriz australiana Toni Colette, que já foi indicada ao Oscar e é ganhadora do Emmy e do Globo de Ouro. No filme, ela é a incansável mãe de Charlie e Thomas, que está grávida da terceira filha, e precisa ser internada por se recusar a poupar esforços nos cuidados com Charlie. Ao longo da trama, Thomas, pouco enxergado pela mãe e o pai, vive intensos conflitos com o irmão autista enquanto aprende a aceitá-lo.

Thomas precisa se colocar em 2º plano para cuidar do irmão em um momento delicado na família

Por causa das preocupações dos pais em torno de Charlie e da série de acontecimentos – divertidos ou nada engraçados – provocados pela condição dele, sobra muito pouco espaço para que Thomas tenha seus conflitos realmente vistos e acolhidos pelos pais. Toda a vida familiar gira em torno das necessidades de Charlie.

Com o pai dedicado ao trabalho no Exército e a mãe internada por complicações de um final de gravidez, Thomas precisa dedicar ainda mais tempo aos cuidados com o irmão – colocando, ele também, seus próprios conflitos em segundo plano. Todo esse turbilhão acontece em um momento da vida em que Thomas tenta se encaixar na nova escola e lidar com o interesse amoroso em Jackie, uma de suas colegas.

Foi justamente à casa dela que Charlie fez sua visita trajando cueca e touca de macaco para usar o banheiro, em uma das cenas mais marcantes do filme. A partir desse inusitado encontro, a garota começa a se interessar por Thomas. Ela traz ao jovem uma nova forma de enxergar o irmão, menos coercitiva e mais leve e compreensiva.

Charlie foi inspirado em um dos dois irmãos autistas da diretora e mostra que a comunicação vai muito além do que é possível dizer

Charlie é um autista não verbal com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), e precisa de medicação diária. Ele tem estereotipias, como movimento pendular e movimento constante dos dedos e das mãos. Charlie consegue compreender o que ouve, embora nem sempre responda imediatamente ao que é dito. Sua relação mais próxima é com a mãe, com quem se comunica melhor e a quem obedece com mais facilidade. Na ausência dela, fica mais teimoso e enfrenta dificuldades com o pai e o irmão.

A diretora do filme, Elissa Down, tem dois irmãos autistas e o personagem de Charlie é inspirado pelo mais novo, Sean. O contato com Sean foi essencial na preparação do ator típico Luke Ford, que interpretou o personagem. Luke conta que se dedicou inicialmente a desenvolver a parte física – como a forma de movimentar os joelhos, os cotovelos, as mãos e ainda como se comunicar a partir destes movimentos corporais. A personalidade de Charlie, diz ele, se desenvolveria a partir dos encontros com Sean, como aconteceu.

O encontro, conta Luke, trouxe uma visão do autismo que vai além do senso comum, como perceber as possibilidades de comunicação de uma pessoa não verbal. Sean trouxe clareza sobre “a forma como ele movimentava o rosto, como reagia às coisas, a energia entre ele e as pessoas ao redor e as relações com pessoas diferentes”. O ator prossegue. “Por exemplo, a relação dele com a mãe é muito afetuosa, quando as pessoas autistas, no entendimento geral do senso comum, não entendem emoções ou sentimentos. Ele sentia, e aquilo era algo que eu não sabia antes. Esse contato me deu o privilégio de ver que há muita vida e muita comunicação sem a fala (veja o depoimento na íntegra, em inglês).”

No início da década de 1990, quando se passa o filme, autismo ainda era tabu e conceito de diversidade nem mesmo existia

Assim como Charlie, é comum que autistas tenham condições associadas ao autismo, as chamadas comorbidades. O TDAH é uma delas. Também não é raro que autistas sejam não verbais e há uma série de recursos tecnológicos de comunicação alternativa para que possam se expressar e estabelecer interações.

O filme se passa no início da década de 1990, um momento em que o autismo ainda era visto como um tabu. Em uma das cenas, o Conselho Tutelar visita a casa da família de Charlie a pedido da vizinha, que ainda ameaça chamar a polícia. Nesse período histórico, o conceito de neurodiversidade ainda nem havia sido formulado. A palavra foi registrada pela primeira vez em 1998, pela socióloga autraliana Judy Singer.

Neurodiversidade é a imensa gama de composições neurológicas humanas, que abrange pessoas com transtornos – entre elas, os autistas – e sem transtornos, as chamadas neurotípicas. A partir desse conceito, é possível compreender com mais facilidade que as pessoas com qualquer distíurbio fazem parte da variabilidade natural da humanidade. São parte da diversidade humana. Da mesma forma, por exemplo, elementos tão diferentes quanto margaridas, jaguatiricas e fungos fazem parte da biodiversidade.

Autismo não tem cura e ninguém deixa de ser autista; conceito de neurodiversidade ajuda no processo de compreensão

Naquela época, também era muito forte ainda a ideia de cura associada ao autismo, o que o próprio conceito de neurodiversidade ajuda a combater. Ele parte da ideia que a pessoa tem uma condição. Hoje entende-se que as pessoas são autistas e precisam de suporte para se desenvolverem na plenitude de suas potencialidades, mas não para deixarem de ser autistas.

Thomas começa a lidar melhor com o irmão a partir do momento que entende que Charlie é daquela maneira e não será de outra forma. A mãe, o pai e Jackie já enxergam Charlie assim e não se sentem envergonhados pelos comportamentos dele.

Há situações que acabam se tornando ainda mais difíceis justamente porque o olhar dos estranhos não passa por esse filtro da aceitação de uma condição. Uma das cenas se passa no supermercado, um ambiente tradicionalmente difícil para boa parte dos autistas pelo excesso de estímulos sensoriais – aromas intensos, luzes fortes e som alto, por exemplo. Após passar as compras e perceber que foram mais caras que o esperado, o pai de Charlie decide devolver alguns produtos e o filho tem uma crise e se joga no chão, gritando, ao lado do caixa, por ter sido contrariado. As pessoas se afastam, com medo e, em nenhum momento aparece alguém que possa oferecer apoio à família.

Irmãos trazem novos olhares para a criação e a conquista de autonomia dos autistas

Há também cenas em que outros adolescentes, que estudam na mesma escola de Thomas, maltratam Charlie. Na primeira delas, arremessam uma bebida na direção do ônibus que leva o jovem para a escola especial. Ao longo do filme, os conflitos se intensificam.

O filme mostra que o estigma que recai sobre os autistas também impactam profundamente os familiares, como é o caso de Thomas. E isso influencia ainda na forma que ele se relaciona com o irmão e no que espera dele. A partir do olhar de Jackie, que gosta da companhia de Charlie, Thomas aprende outras maneiras de olhar para o irmão.

Outro aspecto é que Thomas é menos condescendente com Charlie que os pais e percebe um potencial maior de aprendizado no irmão do que aquele que já é explorado pela família. É um ponto em comum com o livro Jun, que conta a história de um cantor sul-coreano pelo olhar da irmã. Yun-Seon dá bronca nos pais por aceitarem comportamentos que, quando está junto dela, Jun não pratica. Ela também briga para que os pais protejam menos o irmão e possam lhe dar mais autonomia no dia a dia. Com a ajuda da irmã, ele aprende a ir sozinho, de metrô, para as aulas de música.

A diretora do filme, Elissa, também fala sobre a dificuldade de conquista de autonomia de seus prórpios irmãos, hoje adultos. “O mais velho não sai de casa. Sean ainda sai para fazer algumas coisas. Mas acho que eles sentem falta da interação social que costumavam ter na escola.”

Uma série de vídeos infantis produzidos pelas próprias crianças traz relatos de irmãos de autistas que trazem, como em The Black Balloon um sofrimento provocado pelas características do irmão autista, associado às situações únicas provocadas por sua forma singular de existir.

Filme e séries ajudam a combater o estigma; diretora vê resistência à conscientização

A exposição a produções culturais ajuda a combater o estigma em torno do autismo, como inclusive mostram pesquisas sobre o tema. Filmes e séries com personagens autistas, por exemplo, geram mais empatia do que, por exemplo, o conhecimento transmitido em palestras. Amor no Espectro, Atypical e Everything is Gonna Be Ok estão nesta lista de produções. Esta última foi a primeira a trazer uma atriz autista interpretando uma protagonista com autismo: Kayla Cromer, no papel de Matilda.

Filme de estreia da diretora Elissa Down, The Black Balloon fez mais do que combater o estigma e buscar a conscientização sobre o autismo. Ela conta que também revelou nuances inesperadas do público.

“A maioria das pessoas adora o filme, e ri, e chora”, diz. Mas houve quem saísse irritado do cinema. O motivo? “É porque alguns percebem que agiram como o garoto que jogou bebida no ônibus do autista ou o vizinho [que fez comentários grosseiros]. Ou eles dizem: ‘Se eu fosse o pai, eu teria abandonado a família.’ Eu não sabia que o filme faria as pessoas se sentirem culpadas, mesmo sendo uma história edificante sobre amor, aceitação e família.”

O filme não está disponível para usuários de internet no Brasil. Só é possível assistir na plataforma da Amazon destinada aos EUA. O trailer, em inglês, está no YouTube. Assista:

 

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *