Float e o poder da diferença

7/10/2022Histórias0 Comentários

Curta-metragem criado por pai de autista conta a história de um menino diferente, que sabe flutuar

“Por que você não pode simplesmente ser normal?”, pergunta um pai desesperado ao filho que é diferente de todas as outras crianças por ser capaz de flutuar. A frase representa o ponto de transformação na trama de um filme tão curto como emocionante: Float (flutuador, em tradução livre do inglês). A obra, que dura pouco mais de cinco minutos, foi criada por um pai de autista, e está disponível para o público brasileiro desde 2020 na plataforma de streaming da Disney.

O filme aborda a questão do estigma e como ela afeta a relação em família de pessoas consideradas diferentes, como é o caso dos autistas. Lançado em 2019, o trabalho é resultado do programa SparkShorts, do famoso estúdio de animação Pixar, da Disney, que incentiva a expressão de novas narrativas criativas.

A trama é inspirada na relação do próprio diretor, Bobby Rubio, com seu filho autista, Alex, diagnosticado aos 2 anos e meio.

Autor do filme entrou em depressão ao saber o diagnóstico do filho Alex, com 2 anos e meio na época

“Quando ele foi diagnosticado pela primeira vez, eu não lidei bem com isso – na verdade, entrei em depressão”, conta Rubio, em entrevista ao grup Disney (confira a íntegra, em inglês, aqui*).

É comum que mães e pais de crianças autistas enfrentem um período de luto após o diagnóstico, como conta por exemplo o quadrinista mexicano Bef, pai da hoje adolescente Maria, uma menina autista. Em seu livro “Fala, Maria”, Bef conta que passou dois dias chorando no sofá de casa ao saber da condição da filha.

Os pais sentem o impacto não só de lidar com a perda de um filho típico imaginário, mas também da preocupação com os cuidados que a criança precisará receber, a incerteza sobre quais serão, se a criança será plenamente atendida e como ela será tratada nos círculos sociais.

Estigma provoca exclusão de autistas no sistema escolar e no mercado de trabalho

Os autistas, assim como outras pessoas com deficiência enfrentam processos de exclusão social nos ambientes educacionais, no sistema de saúde e no mercado de trabalho. Nos sistemas de saúde, por exemplo, um dos problemas é o acesso ao diagnóstico por meninas e mulheres – a cada 4 meninos, apenas uma menina é diagnosticada.

Nas escolas, é comum que os autistas sejam alvo de bullying dos colegas e que sejam excluídos do convívio na infância e na adolescência.

O sistema educacional brasileiro, por exemplo, ainda peca na assistência escolar e se baseia apenas no número de alunos com deficiência matriculados como índice de sucesso na inclusão escolar, como relatou ao blog o pai de autista e doutor em educação Lucelmo Lacerda. No entanto, falta a adoção de políticas baseadas em dados científicos que possam efetivamente incluir os alunos com deficiência – grupo do qual os autistas fazem parte – e fazer o monitoramento constante de seu desenvolvimento na escola.

No mercado de trabalho, a exclusão é praxe. Nos Estados Unidos, a estimativa é de que 85% dos adultos autistas com formação universitária estão desempregados (confira aqui os dados, em inglês*). Há empresas especializadas na inclusão de autistas no mercado, como a Specialisterne, que não só preparam, como acompamham a evolução do funcionário autista nas empresas.

Cripface reflete a exclusão de autistas do mercado de trabalho no entretenimento, seu combate favorece a inclusão

No mundo do entretenimento, pouco a pouco as produções avançam para evitar o uso de cripface – escalação de atores tipicos para representar personagens atípicos. Há duas produções recentes que apostaram na contratação de atores autistas para viver protagonistas com autismo: Everything Is Gonna Be Ok e As Wee See It.

As produções culturais, inclusive, são efetivas no combate ao estigma e aumenta da empatia em torno dos autistas – o que é cientificamente comprovado por estudos acadêmicos.

O estigma é a associação de características de uma pessoa a um estereótipo negativo, o que dificulta sua aceitação social, fazendo com que o indivíduo seja desvalorizado e rebaixado por conta de suas característucas, que se tornam motivo de vergonha. Não é só apenas a pessoa estimatizada que sofre as consequências, mas também as pessoas do seu convívio íntimo, justamente como mostra Float.

Curta-metragem subverte o estigma ao mostrá-lo como uma habilidade tão fantástica como flutuar

Ao perceber que vizinhos se afastam ao perceber que seu filho é capaz de flutuar, o pai se isola na tentativa de proteger o filho e tentar fazer com que o potencial dele passe despercebido. Ele próprio tenta camuflar a criança na tentativa de incluí-la, até que passa por um processo de aceitação. Justamente para inverter o olhar estigmatizante, o diretor do filme escolheu que o personagem que representa seu filho tivesse o poder de flutuar.

“As pessoas perguntam muito isso — por quê flutuar? Acho que queria aproveitar o meio de animação e mostrar a criança sendo diferente visualmente. Uma criança animada flutuante já é tão diferente de uma criança animada normal. Além disso, eu queria mostrar que as crianças que são diferentes são especiais. Eu queria mostrar isso de uma forma positiva. Eu não queria que o ‘poder’ fosse negativo de forma alguma”, conta Rubio.

“Flutuar também foi feito para ser uma metáfora para qualquer um interpretar por si mesmo. Recebi mensagens de [pessoas] da comunidade LGBTQ e de necessidades especiais que muitas vezes se sentem como um estranho, e fico feliz que eles tenham se identificado com a metáfora”, diz o diretor.

“Flutuadores” da vida real mostram que investir no talento de cada autista contribui para a inclusão social

Apostar no potencial específico de autista pode ser a chave para o procesos de inclusão de um autista. Foi o que aconteceu com a humorista Hannah Gadsby, que ainda não sabia que era autista ao descobrir seu talento para a comédia e investir nele. Hoje ela é mundialmente conhecida graças aos seus dois especiais para a Netfli – um deles, sobre autismo.

Aficionado pela história do Titanic e por peças de Lego, o jovem islandês Brynjar Karl uniu as duas paixões e criou uma réplica do navio com ajuda de pessoas de todo o mundo e expôs seu trabalho em museus de diversos países.

Não esconder o filho, pedir ajuda e ter paciência: os conselhos do autor de Float

Aos pais de autistas que buscam por apoio para aprender a lidar com seus flutuadores, Rubio deixa alguns recados. Um deles é se abrir para pedir apoio. “Saiba que você não está sozinho nesta jornada. Já passei pelo que outros pais estão passando. É uma jornada difícil. Mas não há problema em pedir ajuda. Até para mim – foi difícil, mas assim que pedi ajuda, as coisas melhoraram muito”, diz.

Outra recomendação é assumir a condição da criança. “Também sugiro ter acesso a recursos de apoio online ou com outras pessoas em sua comunidade para ajudar você e sua família a se curarem. Não esconda. Saia e tente alcançar os outros. Esta jornada começa com você, então a cura começa. Isso também é expresso em Float.” Por último: paciência, “para aproveitar os momentos e aproveitar as vitórias”.

*Nota da edição: É possível traduzir o conteúdo de qualquer site clicando na página com o botão direito do mouse e selecionando a opção “Traduzir para o português”.

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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