Fitas e os laços possíveis com autistas não verbais

10/10/2022Histórias0 Comentários

Animação aborda possibilidades de conexão entre típicos e atípicos a partir de uma breve aventura de dois adolescentes

“A garota que não fala?”, lamenta Marcus ao saber que terá como parceira de canoagem Renee, uma garota autista não verbal de 13 anos, que está animada à espera de companhia a bordo de um barco de madeira. A cena faz parte do curta-metragem Fitas (Loop, na versão original em inglês), uma animação em 3D lançada em 2020 e disponível para o público brasileiro no canal de streaming da Disney.

O filme que retrata a aventura de Renee e Marcus dura cerca de cinco minutos e dá uma breve aula de questões básicas sobre a convivência com autistas não verbais.

Comprometimento da linguagem verbal não impede capacidade de comunicação; processo se dá de outras formas

A primeira liçao de Marcus é: não utilizar a linguagem verbal não significa não se comunicar. Apenas tira a verbalização de jogo, mas há muitas outras formas de expressão em campo.

Nem todos os autistas são não verbais. Mas uma das duas características comuns a todos os autistas verbais ou não é a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento. Renee, por exemplo, anda sempre acompanhada de seu celular e gosta de emitir repetidamente no aparelho um estímulo sonoro de três latidos.

Outra característica comum a todos os autistas é o comprometimento da comunicação social e da interação socioemocional em diferentes contextos. Renee compreende o que lhe é dito e responde aos estímulos. Em um momento, no barco, sem saber o que a parceria gostaria de fazer, Marcus pede ajuda e diz que ela precisa ser bem específica para que ele possa lhe ajudar. A menina mostra na tela do celular um sorridente emoticon marrom que indica a Marcus sua necessidade de atravessar o lago para ir ao banheiro.

Marcus se surpreende ao imitar Renee e compreender o prazer em sua hipersensibilidade

No caminho percorrido pela dupla, é possível perceber também a hipersensibilidade de Renee. É comum que autistas tenham distúrbios sensoriais, porém eles podem não aparecer ou aparecer de múltiplas formas, de maneira singular em cada autista.

É possível que o distúrbio se manifeste de formas diferentes em uma mesma pessoa. Um autista pode, por exemplo, ter hipossensibilidade (falta de sensibilidade) nas pernas e hipersensibilidade (excesso de sensibilidade) nos braços.

No caso de Renee, vemos que ela tem hipersensiblidade tátil e auditiva. Em um dos momentos, ela se sente muito bem quando estica os braços à frente para sentir a grama alta à beira do lago e pede que Marcus fique indo e voltando com a canoa para que ela possa sentir as folhas repetitivamente. Marcus não havia percebido o quão gostosa era essa sensação e fica surpreso ao experimentá-la.

Excesso de estímulos sensoriais pode desencadear crises em autistas

Logo depois, Marcos decide entrar em um túnel na tentativa de agradar Renee e ela se encanta com o eco dos latidos que tanto gosta de ouvir ao acionar o telefone. No entanto, quando um barco a motor passa por perto, ela sofre uma crise. Chora, joga o celular na água e grita, deixando Marcus desnorteado.

É comum que nestes momentos de crises, autistas e seus acompanhantes sejam incompreendidos e raramente recebam apoio. Shoppings e supermercados são ambientes especialmente perturbadores para autistas, com seus aromas intensos, sons em volume alto e excesso de cores e luzes e movimento.

Uma maneira de lidar com a sobrecarga de estímulos sensoriais – ou mesmo emocionais- são os stims (ou estereotipias): movimentos repetitivos que também aparecem de múltiplas formas – o balançar do corpo ou o mexer de mãos e dedos, por exemplo. Renee adota esses movimentos ao tentar se comunicar.

É comum, no entanto, que uma criança autista em crise nesses ambientes seja entendida como alguém que faz birra, enquanto na verdade está respondendo à sobrecarga sensorial. Para cada uma, haverá uma forma específica de lidar com o momento. Paciência é sempre recomendável. Marcus optou por usar a sua para aguardar a recuperação de Renee.

Filme nos mostra a possibilidade de conexão entre pessoas típicas e atípicas

Em seu breve passeio ao lado de Renee, Marcus tem uma amostra do que é a neurodiversidade. Ele percebe que ainda que a mente de Renee se comporte de forma diferente da dele, é possível criar uma conexão.

Marcus é um garoto neurotípico, ou seja, alguém que não possui transtornos neurológicos. Já Renee, por ser autista, é chamada de neuroatípica, ou seja, alguém que tem um distúrbio neurológico. Isso não quer dizer que ela tenha que ser curada ou que seja uma pessoa inferior a Marcus. Os dois são parte do que chamamos de neurodiversidade, que é a variedade de composições neurológicas humanas.

Para entender melhor este conceito, podemos compará-lo com o de biodiversidade. Assim como abelhas, samambaias e bactérias compõem a biodiversidade, atípicos e neurotípicos fazem parte da neurodiversidade. Ser autista é, então, ter apenas mais uma forma de pensar, diferente daquela considerada como padrão.

“Não há cérebros certos ou errados. Todos são igualmente válidos e igualmente valiosos” afirma a psicóloga australiana Jac den Houting.

Pesquisador autista afirma que comunicação se dá de forma mais fluida entre pessoas cujos cérebros funcionam da mesma forma

É comum comparar os diferentes funcionamentos cerebrais de pessoas típicas e atípicas com o funcionamento de sistemas operacionais de computadores, celulares ou videogames. Podemos nos divertir jogando PlayStation ou XBox, fazer trabalhos escolares em programas da Macintosh ou do Windows e acompanhar as redes sociais em celulares com sistema Android ou iOS.

Pesquisas realizadas por autistas vêm tornando essa ideia mais clara. O pesquisador autista Damian Milton propõe o que chama de “problema da dupla empatia”. Ele defende pessoas com autismo talvez não tenham déficits sociais, mas que haja, na verdade, uma dificuldade de comunicação entre autistas e não autistas justamente por não pensarem da mesma forma. Típicos e atípicos, na visão de Milton, simplesmente se comunicam melhor com pessoas que pensam da mesma maneira que eles mesmos.

Fitas propõe que se expor a uma pessoa que pensa de forma diferente nos permite compreendê-la e nos comunicar com ela. A inclusão permite que isso aconteça.

Filme foca na busca por conexão entre os personagens sem se apoiar em estereótipos

Em uma das análises do filme, o canal Questing Refuge observa que Marcus não é apresentado como herói, mas como um garoto que está tentando entender como se comunicar com uma pessoa que não verbaliza (assista aqui à análise completa, em inglês https://www.youtube.com/watch?v=qGV748gvR30).

Renee também não aparece como alguém que precisa ser tratada com pena ou que precise de caridade. Ela é apresentada como uma pessoa que deve receber o mesmo respeito que qualquer outra merece e que deve ser olhada em suas necessidades e possibilidades, assim como todo ser humano. Não há idealização em torno dos personagens. A alternância dos olhares entre os de Marcus e Renee ajuda a trazer o equilíbrio e a troca entre os personagens na narrativa.

Os dois são retratados como pessoas diferentes, capazes de se conectar, e estabelecendo, ao longo do filme, essa conexão. Uma fala da cena inicial dá o tom. Quando o professor diz a Marcus que ele vai navegar com Renee, define a garota dizendo que “ela ama canoagem”.

Atriz autista não verbal dublou Renee e ONG liderada por autistas revisou a animação

“Se temos histórias mais inclusivas que têm diferentes tipos de pessoas que dão a você aquela sensação de ‘não sei o que fazer’, e então você tem um personagem que vai tentar algo ou você tem uma situação que coloca eles em um lugar onde eles têm que cruzar esses limites, nós vamos aprender mais um sobre o outro”, disse a diretora Erika Milsom em entrevista à ABC7 (leia a íntegra neste link).

A produção da animação também se preocupou com a representatividade. O filme passou por revisão da Autistic Self Advocacy Network, uma ONG norte-americana liderada por autistas.

Além disso, a escolha da dublagem evitou o que se chama de cripface – a escalação de pessoas típicas para representar personagens autistas. A duplagem de Renee ficou a cargo da atriz Madison Bandy, que também é uma autista não verbal. As gravações ocorreram na casa de Madison, pois os produtores consideraram que o estúdio não era o ambiente mais confortável para ela (veja um pouco mais desta história, em inglês, aqui).

“Eu amo o quanto ela é perfeita para o papel por ser uma voz autêntica para o personagem. Sem ela, não teríamos feito algo tão autêntico e verdadeiro. Sua inclusão não foi apenas poderosa, mas tornou mais divertido contar essa história”, diz a diretora.

Erika conta que a proposta da consultoria e também da contratação de Madison veio inspirada pelo lema: Nada sobre nós sem nós. “O que significa que você não deve contar histórias sobre pessoas com deficiência sem incluí-las no processo de fazer a história – e em um papel significativo”, disse em entrevista ao site Respectability (leia aqui a íntegra, em inglês).

Como ela definiria a mensagem do filme? “Mesmo quando não parece haver a possibilidade de se conectar, ela existe.”

*Nota da edição: É possível traduzir o conteúdo de qualquer site clicando na página com o botão direito do mouse e selecionando a opção “Traduzir para o português”.

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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