Royan Lee: O que aprendi com meu irmão autista
Professor conta seu processo de reconexão com o irmão e de conscientização sobre inclusão após anos afastado da família
“Quando você tem um filho com deficiência, na melhor das hipóteses, é algo difícil”, conta o professor Royan Lee. O irmão dele chegou a ser diagnosticado como “retardado” e com transtorno evasivo do desenvolvimento, até que, enfim, recebeu o diagnóstico de autismo.
Os pais das crianças eram imigrantes sul-coreanos recém-chegados ao Canadá. Duas pessoas que haviam parado de estudar no início da adolescência e, como milhares de outros sul-coreanos, decidiram deixar o país na tentativa de buscar uma vida melhor.
“Quando o desafio de ter um filho com deficiência cruza com todos os tipos de falta de privilégio, você pode se sentir sem esperança – na melhor das hipóteses – ou simplesmente acabar entorpecido”, disse Royan, referindo-se a seus pais durante sua palestra no TEDxKitchener, na província canadense de Ontário.
Cerca de 40 anos após deixar a Coréia do Sul, a mãe dele ainda fala inglês com um sotaque carregado. O pai ele pouco vê, por ter questões de interação social parecidas com a de seu irmão.
Muffin era uma corajosa cadelinha que resgatava o irmão de Royan de episódios de fuga
Fascinado por cães, Royan um dia conseguiu finalmente conseguiu convencer seus pais a terem um em casa: a destemida e bagunceira Muffin, que ninguém na casa conseguia controlar. No entanto, era justamente Muffin que conseguia acompanhar as fugas repentinas do irmão de Royan, que saía correndo de casa constantemente.
“A coisa mais difícil de viver com ele era que ele era um corredor”, conta Royan. “Se havia uma brecha na porta, ele chegava lá fora na velocidade da luz como um atleta em uma estrada aberta ou em uma calçada como Forrest Gump.” E a Muffin? “Ela era como um super-herói. Sempre que ele decolava, normalmente sem o nosso conhecimento, ela ia atrás dele como um míssil teleguiado.”
Pesquisas indicam que episódios de fuga podem afetar entre 20% a 50% das crianças com autismo. Em um estudo de 2011 da IAN (Interactive Autism Network), quase metade dos pais disseram que seus filhos tentaram fugir pelo menos uma vez após os 4 anos de idade.
Cena icônica de fuga é representada em filme sobre o desenvolvimento de um irmão de autista
A cena de um autista em fuga é uma das mais marcantes no filme australiano The Black Balloon, que aborda justamente a adolescência do irmão de um jovem autista. Na cena, Charlie (um autista de 20 e poucos anos) sai correndo pela rua de uma pequena cidade vestindo apenas uma cueca e uma touca de macaco.Ele só para quando resolve entrar em uma casa aleatória e usar o vaso sanitário do banheiro de um estranho – enquanto, no box, uma adolescente assustada interrompe seu banho.
A situação é parecida com a que descreve Royan. “Eu quero que você visualize um garotinho asiático gordinho em várias roupas diferentes, correndo pela janela de casa, enquanto você está tomando uma xícara de chá. Eu sei que você está pensando sobre o quanto esta cena é hilária e também sobre o quanto ela é trágica”, diz o professor. “Mas o que era ótimo na Muffin era que ela seria implacável em avançar contra o bumbum do meu irmão e morder firmemente a calça dele para arrastá-lo para casa.”
Royan usa a descrição desta cena para afirmar. “O mundo é melhor quando deixamos de lado nossa injusta e infrutífera busca pelo que é considerado normal e, em vez disso, abraçamos as muitas maneiras diferentes com as quais as pessoas usam seus cérebros”.
Cena que parecia divertida na infância passou a ganhar outro peso quando o irmão de Royan cresceu
Royan conta, no entanto, que, à medida que seu irmão crescia, deixava de ser uma criança fofinha que corria pela rua com uma cadela branca e peluda atrás dele. Quanto mais velho, passava a ser visto ainda mais como alguém de comportamento problemático que a família já não queria expor ao mundo.
“Me lembro de pensar comigo mesmo: ‘Por que meu irmão não pode ser normal? O garotinho que eu costumava abraçar, com quem eu costumava lutar e cantar músicas?’ Agora parecia um pouco mais como um fardo”, conta.
Este pensamento se reflete por exemplo em uma frase que ele escuta de colegas – e até já chegou a falar – em seu trabalho como professor: “Eu não quero ficar limitado à educação especial”. Ou então, ouve de outras pessoas: “Não sei como você consegue trabalhar com isto” ou “Eu jamais conseguiria” ou até mesmo “Você é um santo”.
Mesmo que o número de autistas diagnosticado só aumente, ideia de que cuidar deles é um fardo ainda persiste
Quando essas palavras são direcionadas a pais de pessoas com deficiência ou profissionais de educação especial, diz Royan, elas têm um significado diferente de quando se referem, por exemplo, a um atleta olímpico ou a um cirurgião de um pronto-socorro. “Educadores e pais de crianças com deficiência não precisam de um discurso em torno de seu trabalho que demonstre pena ou descreva tudo o que fazem como um ato de martírio”.
O diagnóstico de autismo vem crescendo a cada ano. Uma das estatísticas mais confiáveis é a do CDC (Center for Disease Control, agência norte-americana de saúde). Os dados mais recentes apontam que 1 a cada 44 crianças são hoje diagnosticadas com autismo. Em 2000, era 1 a cada 150. Se os números estão aumentando, onde estão essas pessoas no nosso dia a dia?. “Quantas vezes você sente que tem esses encontros com pessoas como meu irmão no trabalho, em seu escritório ou passeando com o cachorro?” afirma.
Para o professor, essas frases dão a entender que é uma “tarefa indesejável” trabalhar com “algumas das pessoas mais marginalizadas de nossa sociedade”. “Não deveríamos todos nos considerar educadores ou pais de crianças com necessidades complexas e diversas, em vez de apenas deixar isso para um pequeno grupo de indivíduos nobres que conseguem ir além do que se espera?”. Esse discurso, diz Royan, reflete a sociedade em que vivemos, que reforça o estigma sobre as pessoas com deficiência e seus familiares.
Royan decidiu deixar o país e a família e, ao voltar, encontrou uma realidade ainda mais dura para o irmão
Royan conta que decidiu se afastar da família porque já não conseguia lidar com o frustrante desenvolvimento do irmão. “O velho ditado que diz que você não pode ajudar alguém, a menos que você se ajude, realmente soou verdadeiro para mim.” Ele mudou de país, casou, teve uma filha e conta que se tornou uma pessoa aberta, que acabou se reencontrando com sua própria história. “Em meu primeiro trabalho como professor, havia um menino na classe com o mesmo perfil do meu irmão”. Após seis anos fora do país, ele decidiu voltar para ajudar a família.
O reencontro foi duro. Foram anos vivendo em um país tropical no hemisfério sul. Ele e a família partiram em janeiro, em meio ao alto verão e chegaram a Toronto no auge do inverno. O irmão estava irreconhecível. Grande, zangado e instável. “O menino com brilho nos olhos foi substituído por um de olhar distante, quase lobotomizado, que agia como se eu fosse um estranho”, descreve Royan.
“Nunca vou esquecer o dia em que ele correu até minha filha de um ano e a empurrou para o chão totalmente perturbada por algo que só ele mesmo sabia o que era. Eu me lembro de ter que brigar fisicamente com ele e me perguntar: ‘Será que eu vou ter que sair na mão com ele todo dia?’”. Sem saber o que fazer, Royan recorreu ao Google para tentar encontrar algum suporte. Após as pesquisas, fazia ligações, passava por muitas pessoas, sem conseguir encontrar suporte. “Foi muito desmoralizante”, afirma.
Busca por apoio transformou como Royan enxergava o irmão e a forma como a sociedade trata pessoas com deficiência
A partir da experiência na procura por apoio para o irmão, Royan elenca alguns aprendizados:
1 – Nunca aceite não como resposta. “Aprendi que se alguém dissesse: ‘Ah, sim, nós entraremos em contato com você’, então eu teria que ligar de volta no dia seguinte”.
2- Ignore pensamentos negativos. “Parar de ouvir a parte do nosso cérebro que nos diz: ‘Ah, você pode ser irritante ou você pode ser rude’. Se alguém disser que pode me responder dentro de uma semana, eu já ligo de volta no dia seguinte.”
3- Viva o que é real. “Tinha que parar de sentir pena de mim mesmo. Eu tinha que parar de esperar pelo dia em que meu irmão seria normal. Eu tinha que parar de esperar para ele ser consertado como um carro que não pega. Eu tive que parar de desejar que ele saísse comigo e tomasse uma cerveja e falasse sobre coisas que os homens deveriam falar. Basicamente, eu parei de desejar que ele se tornasse algo que não era.”
Ao longo do processo, Royan passou a aceitar a realidade e admirar o que o irmão é capaz de lhe ensinar
4- Ame uma pessoa como ela é. “Eu percebi que meu irmão tem tanto a oferecer ao mundo. Percebi que ele era tão gentil, e que só estava confuso sobre como ter amor correspondido. Percebi o quão determinado e resiliente ele era. Também percebi que quando ele entende o contexto, ele é mais confiável do que muitas pessoas que você conhece. Comecei a apreciar quanta força e sabedoria meu irmão estava compartilhando comigo”
5- Normas são construídas socialmente. “Ele é meu lembrete constante de que as normas sociais que temos no mundo são apenas conceitos socialmente construídos que variam de acordo com o contexto e evoluem com o tempo.”
6- É preciso lutar por inclusão. “Meu irmão também está aqui para me lembrar que o mundo, embora tenhamos feito tanto progresso, ainda é um lugar desigual e excludente.”
Royan passou a compreender que o autismo, assim como outras deficiências, faz parte das variações naturais humanas
7- Comunicação pressupõe troca. “Meu irmão também me lembra que comunicação não é algo que acontece só porque você diz algo a alguém ou envia uma mensagem por e-mail ou escreve em um memorando. É quando as mensagens são enviadas e recebidas e retribuídas”.,
8 – A neurodiversidade é importante. “Meu irmão também me ensinou muito a explorar esse grande novo conceito e movimento chamado neurodiversidade, que Steve Silberman define em seu livro Neurotribes: ‘Condições como autismo, dislexia, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) devem ser consideradas variações naturais com pontos distintos que contribuíram para a evolução da tecnologia e da cultura, em vez de uma lista de verificação de déficits e disfunções’”.
Os aprendizados ao longo da jornada, diz Royan, fizeram com que ele abrisse mão de buscar o que é considerado socialmente como normal. “Hoje eu aprecio o que é entendido como esquisito muito mais do que o que se diz normal. Eu rejeitei minha busca por isso. É como se tentássemos segurar esse conceito em nossas mãos como se fossem grãos de areia. Mas é muito mais libertador soltar essa areia. A praia é muito mais bonita quando você faz isso. Sou muito grato ao meu irmão por me fazer um melhor educador, um melhor pai e um melhor marido.”
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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