David Sue: antes de tudo, um músico

26/05/2023Histórias0 Comentários

Multi-instrumentista fala sobre como a viralização de um vídeo em 2020 o ajudou a fazer as pazes com o diagnóstico de autismo

A relação de David Sue com a música ajuda a definir boa parte de sua história. O caminho envolve o acaso, alguma teimosia, grandes amizades e esbarra também na transformação de sua compreensão do diagnóstico de autismo. David é músico e autista.

Justamente no momento em que alcançou notoriedade como músico, David precisou repensar a maneira como encarava o transtorno. Foi em 2020, quando um vídeo em que ele canta Baba O’Riley da banda The Who viralizou. Até então, ele ainda não se sentia tão confortável com o diagnóstico, que recebeu aos 13 anos.

“As referências de autismo que eu tinha na época eram sempre aqueles casos mais extremos, daquele super gênio ou daquele autista mais comprometido, que precisava de um nível de suporte absurdo. E eu não tava em nenhuma dessas categorias. Aí eu pensava: Ué, como assim?”.

Há tantas formas de manifestação do autismo quanto autistas no mundo; cada autista é único

O conceito de autismo como espectro foi apresentado pela psiquiatra Lorna Wing na década de 1970. Mas o estereótipo do autista, como a fala de David revela, por muito tempo foi associado a uma pessoa que reúne genialidade matemática e uma intensa dificuldade de interação socioemocional.

A forma como a mídia trabalha esta imagem tem bastante influência neste estereótipo. Um dos exemplos é o personagem Raymond Babbit, do filme Rain Man (1998), ganhador de oito estatuetas do Oscar. A criação de Raymond é inspirada em um autista com síndrome de Savant que realmente une as duas características, mas que, de maneira alguma, representa os autistas como um todo.

Como se trata de um espectro, cada autista apresenta o transtorno de uma forma. E nem todo autista tem savantismo, é homem, cis, branco e herdeiro, como Babbit.

Falta de habilidade matemática levou David a desenvolver sua musicalidade

David não teria entrado em contato tão cedo com a música se não fosse justamente a sua dificuldade em aprender matemática. “Uma matéria que sempre me deu pesadelos na época de escola”, afirma.

A busca por aulas de reforço o levou à casa de um professor com uma sala cheia de instrumentos musicais. Da matemática, não escapou. Na música, pode escolher. Quis o piano. Mas as aulas duraram pouco: David preferia testar o que bem entendia em vez de se dedicar a aprender os comandos do professor.

É importante frisar que a variedade no autismo é imensa e vai além da facilidade (ou não) de fazer cálculos. Há quem consiga se inserir no mercado de trabalho em nível de excelência e quem precise de apoio para se vestir ou com a rotina de higiene íntima. Pode (ou não) incluir síndromes, comorbidades, hiper ou hipossensibilidade ou estereotipias, por exemplo.

Também não existe um fenótipo autista, ou seja, características físicas pelas quais seja possível identificá-los – como acontece com as pessoas com síndrome de Down, por exemplo. Por isso, é impossível dizer que alguém parece (ou não) autista. A realidade de um autista costuma fazer os estereótipos caírem por terra.

Tanto autistas quanto não autistas fazem parte da neurodiversidade humana

Um outro conceito importante para combater o estigma sobre o autismo é o de neurodiversidade, registrado pela primeira vez em 1998 pela socióloga australiana Judy Singer.

Neurodiversidade é a imensa variedade de composições neurológicas humanas, sejam elas típicas ou atípicas. Assim como a biodiversidade engloba seres tão distintos quanto macacos, fungos e orquídeas, a neurodiversidade engloba pessoas neurodivergentes, como autistas e esquizofrênicos, e também pessoas sem qualquer tipo de disfunção neurológica.

A ideia de neurodiversidade consegue reunir pessoas típicas e atípicas como sendo parte de um mesmo grupo e ajuda a romper com o estigma sobre neurodivergências. Em vez de estigmatizá-las, passa a apresentá-las como parte da variabilidade humana.

Ao comentar sua visão ainda adolescente sobre autismo, David ilustra bem como é viver em um mundo em que um transtorno é estigmatizado. “Eu sentia que esse meu diagnóstico de autismo me limitava, eu pensava assim na época. Eu tinha medo das pessoas me acharem limitado por causa disso. Eu nunca quis ficar atrás de ninguém ou me sentir inferior a ninguém. Não gostava dessa sensação de inferioridade. Eu me sentia assim na época. Tinha um certo medo das pessoas me enxergarem como menos capaz do que as pessoas, entre aspas, normais”, conta.

Tudo Bem Não Ser Normal é a indicação de David para quem quer compreender melhor as diferenças humanas

Tanto o conceito de espectro como o de neurodiversidade só foram começar a ganhar mais visibilidade a partir da popularização das redes sociais e da profusão de perfis ativistas que passaram a discuti-los e também a mostrar a imensa variedade de maneiras de ser autista.

Além disso, novas construções de personagens – ainda que limitadas nos aspectos de raça, identidade de gênero e sexualidade – vêm ganhando espaço em séries, como Atypical, Everything Is Gonna Be e As We See It.

David indica o dorama Tudo Bem Não Ser Normal, disponível na Netflix. “Tem um personagem que tá no espectro, mas também tem outros casos, tem outras questões. Não só sobre autismo, tem outros transtornos, outras coisas, no meio do dorama. Eu achei fantástica a maneira como eles lidaram, de um modo geral, com todas essas histórias, todas essas formas de ser.”

O título da série representa de certa forma a maneira como David se enxerga hoje, em uma fase de maior aceitação do autismo. “Durante muito tempo, eu tive aversão a esse tema, sabe, do meu diagnóstico”, conta David.

O ano de 2020, diz ele, foi um divisor de águas. Não só porque alcançou grande visibilidade como músico após o vídeo cantando The Who viralizar, mas por exigir que a partir disso, tivesse de encarar o autismo de outra maneira. Além disso, na mesma época passou por um relacionamento amoroso que trouxe ainda mais pontos de reflexão.

Cantor e ator Evandro Mesquita foi crucial para a viralização do vídeo de David

O vídeo foi gravado de forma despretensiosa, como um treino para a aula de canto. O professor queria apenas um registro. Gravaram e postaram. Quando o ator e também cantor Evandro Mesquita repostou, as imagens viralizaram. Foram dezenas de milhares de visualizações, se somados todos os posts que compartilharam o conteúdo. Assista aqui.

O talento chamou a atenção da imprensa e resgatou alguns conflitos de David. “Não queria que falassem do meu diagnóstico, mas deixei falarem. Por mais que eu tivesse, e ainda tenho, esse medo das pessoas repararem primeiro no meu autismo e depois no meu eu artístico, eu deixei eles mencionarem o meu diagnóstico. Tipo, ah, autista cantando The Who e tal.”

David aponta que o autismo é usado de forma apelativa para atrair a atenção popular.

“Os rótulos fazem muita diferença na hora das pessoas julgarem. Duvido muito que esse vídeo ia fazer aquele sucesso todo, a ponto de eu aparecer na televisão, aparecer na Globo, aparecer no SBT, na Record. Mesmo que em pequenas reportagens, eu duvido que eles iriam se interessar se não tivesse o autismo envolvido. Porque tem apelo popular. A mídia precisa de apelo popular para existir, para ter ibope. E o autismo é algo que consegue ser bem apelativo se você usar de uma determinada maneira.”

Vídeo que viralizou mostrava apenas uma das tantas faces musicais de David

Aquele, no entanto, era apenas um registro das tantas qualidades de David como músico. Ele havia começado as aulas de piano aos 7 anos, mas cansou logo depois. Aí, aos 13, por coincidência na mesma época em que descobriu o diagnóstico, decidiu aprender violino. Acabou se contentando com o violão e penou com um professor que ensinou, logo de cara, a fazer pestana – quando todas as cordas são pressionadas ao mesmo tempo por um só dedo. David diz que ficou traumatizado. Largou o professor -e as aulas.

Mas no ano seguinte, quando se encantou com a obra de Raul Seixas. Em uma fase em que escrevia bastante e queria ser escritor, entendeu que poderia usar as palavras de maneira complexa e associá-las à música de uma forma universal – já que é possível emocionar até mesmo alguém que não entenda o idioma. No fim de 2014, encontrou um novo professor de música, que o acompanha até hoje, atualmente com aulas de baixo, depois de passar pela guitarra.

A música trouxe a ele uma conexão inédita. Vandi, o novo professor, e Mana, dono da escola (o Instituto Coda), foram as primeiras pessoas com quem estabeleceu laços de amizade. “Nunca tive muitos amigos na escola, então de certo modo foram uns dos meus primeiros amigos com quem eu podia contar, desabafar.”

Dificuldade de compreensão da linguagem não verbal impacta também os vínculos amorosos de David

Apesar do autismo ser um espectro, há duas características comuns a todos os autistas. Uma delas são padrões restritos e repetitivos de comportamento. A outra, o déficit na comunicação social ou interação socioemocional, que pode atrapalhar, e muito, a possibilidade de se conectar com pessoas típicas e criar e manter amizades –em especial pela dificuldade de compreender linguagem não verbal (ironias, piadas, gestos, caretas, etc.).

Há autistas para quem a dificuldade de interação afeta (em diferentes intensidades) o estabelecimento de relações amorosas. É o caso de David. “Não entendo algumas coisas sobre o autismo ainda. Mas até onde eu sei, a confusão de sentimentos também entra um pouco. Em 2020, enfim, eu entrei num relacionamento que eu nem sabia direito o que eu sentia pela pessoa em questão. Porque é aquela coisa: você ama essa pessoa ou você ama a atenção que a pessoa te deu? Ou: você odeia aquela pessoa ou às vezes você não percebeu que aquela coisa meio besta que a pessoa falou era só uma ironia, por exemplo?”, conta.

“Isso me prejudicou bastante. Não só nesse relacionamento, mas na minha vida como um todo. Seja na dificuldade de fazer amizades, e também de questões pessoais, essas questões de paixonite e tal. Meio que tem um padrão de eu me apaixonar sempre por quem me dá atenção. Acho que de todas as questões que o autismo me trouxe, essa confusão de sentimentos e a dificuldade de interação foram as que pesaram mais na minha vida.”

Lições de música foram suporte de David em momento depressivo

Na época em que começou a aprender violão, ainda em 2013, David lidava com episódios de tentativas de suicídio – algo, infelizmente, comum entre autistas. Como lição, o professor pedia para ele escrever letras que pudessem trazer inspiração para a vida.

“Eu ainda tava enfrentando aquele lance da depressão, eu me cortava também, tinha tentado me matar várias vezes. Ele me dava uns temas e dizia: ‘Quando você trouxer essa letra, a gente vai musicar’. Isso me motivou bastante, foi muito importante pra mim. Ele dava um tema específico, essas coisas assim mais pra cima: amor, felicidade, música. Eu tava num momento nebuloso e foi um desafio escrever sobre essas coisas.”

Autistas são quatro vezes mais propensos a sofrer de depressão ao longo da vida que pessoas típicas, segundo artigo publicado pelo Journal of Abnormal Child Psychology em 2019. As pessoas no espectro também têm quatro vezes mais chances de tentar suicídio e oito vezes mais chances de morrer por suicídio que uma pessoa típica (leia mais aqui, em inglês).

Quando vídeo viralizou, músico já tocava violão, baixo e guitarra, tinha lançado EP e fazia aulas de canto há 3 anos

Em 2015, David se apresentou a um público pela primeira vez. E se arriscou a cantar. Foi em uma prova na gincana da escola, em frente aos colegas com quem não conseguia criar um laço de amizade. “Estar naquele palco cantando foi uma forma de me comunicar com eles e de me comunicar comigo mesmo ao mesmo tempo”, diz.

David ganhou a prova, e a sensação foi tão boa que ele procurou um professor de canto. As aulas engrenaram em 2017.

Em 2019, assumiu seu nome artístico. Matheus Cuelbas deu lugar a David Sue. David, mesmo nome de Bowie, e Sue, sobrenome da belga Selah, dois artistas de diferentes gerações. Também em 2019, gravou o primeiro EP. Em 2020, o vídeo fez fama. A viralização trouxe seguidores e levou ouvintes ao EP. “Números que eu nem imaginava, que se você for ver são poucos comparado com várias outras coisas. Mil e poucas reproduções e tal, mas pra mim foi muita coisa mesmo.”

Houve ainda o impacto na aceitação do transtorno. “Esse vídeo fez com que eu refletisse mais do que nunca em toda a minha vida sobre o meu diagnóstico. Foi uma reflexão, foi uma luta interna. Eu fui, entre aspas, forçado a fazer as pazes com o meu diagnóstico. Tentar aceitar que, de fato, eu sou autista e que isso não tem problema nenhum.”

Aula de canto deu frutos: a banda O Soldado Azul, que hoje tenta se profissionalizar

Hoje, David se dedica também à sua banda, O Soldado Azul que agora busca se profissionalizar. O nome faz referência a um poema escrito por David inspirado no Mito da Caverna, de Platão. O grupo se encontrou com a ajuda do professor de canto, Fabiano, que indicou o filho e um amigo para a formação. Deu certo.

No início, David tinha 17 anos e os companheiros Pedro e Ian, 13. “Foi como ter uma banda com meu irmão mais novo”, diz. “Mas a gente tinha os mesmos interesses musicais. A gente tá aí até hoje como banda, cresceu junto musicalmente, e eu cresci muito nesses últimos tempos. Principalmente nesse lance de banda, você tem que trabalhar no coletivo, pelo bem da música.”

O trabalho de David está disponível no Instagram, no YouTube, no Spotify e tem muito mais neste link.

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work

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