Muito além do que ser fã de algo, ter um hiperfoco pode prejudicar tarefas do dia a dia; entenda o que é e como lidar
O hiperfoco “é um fenômeno que reflete a completa absorção de uma pessoa em uma tarefa, a um ponto em que a pessoa parece ignorar completamente ou ‘desligar-se’ de todo o resto”. A definição está registrada no artigo “Hiperfoco: a fronteira esquecida da atenção”, uma revisão de estudos sobre o tema publicada em 2019 pela revista científica Psychological Research (baixe aqui o pdf, em inglês).
É importante ressaltar que o hiperfoco não se trata apenas de estar aficcionado por um assunto, como os fãs apaixonados por um time de futebol ou uma celebridade. Nem mesmo gostar de jogar videogame e estar por dentro de todas as novidades de um determinado jogo, por exemplo.
O hiperfoco é necessariamente algo relacionado a um transtorno do neurodesenvolvimento, como o TEA (Transtorno do Espectro Autista) e o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), explica a neuropsicóloga Joana Portolese, do Ambulatório PROTEA (Programa do Transtorno do Espectro Autista) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Dificuldade de comunicação do autista pode fazer com que seu hiperfoco seja um fator de isolamento
No caso do autismo, o hiperfoco pode prejudicar as interações sociais e até mesmo a saúde do autista. As conexões que se estabelecem a partir do hiperfoco dos autistas podem não ser funcionais e há o risco de provocarem o isolamento do indivíduo por um grupo.
Os interesses específicos – por galáxias, plantas ou dinossauros, por exemplo – podem acabar não sendo bem comunicados com os outros e sendo usados fora de contexto, diz Joana. “Então, como resultado, essas crianças acabam ficando isoladas, brincando mais sozinhas. Porque é muito difícil você abrir mão daquele seu hiperfoco em detrimento da relação com o outro”, afirma a neuropsicóloga.
Manifestação do hiperfoco no TDAH não tende a prejudicar a interação como ocorre no TEA
No TDAH, o hiperfoco se manifesta de maneira “absolutamente diferente”, conta Joana. “No TDAH, a pessoa foca naquilo que chama a atenção dela e fica muito motivada. Aí a pessoa acaba desenvolvendo uma atenção plena para um estímulo, então é uma atenção seletiva a algum estímulo específico”.
Mas no caso do TDAH , a pessoa não perde a capacidade de interação. “No TDAH, eu posso ter um hiperfoco de estudar, por exemplo, mas quando eu preciso interagir ou conversar, eu tenho um repertório para interagir e para conversar. Essa é uma grande diferença entre os transtornos.”
O autismo é um espectro e se manifesta de maneiras diferentes em cada pessoa. Há, no entanto, dois pontos comuns a todos os autistas e que ajudam a compreender a diferença da manifestação do hiperfoco em pessoas com TEA e com TDAH:
- Os autistas têm déficit de interação socioemocional. É difícil para os autistas compreenderem insinuações, piadas, expressões populares e mensagens implícitas em geral.
- Eles também adotam comportamentos restritos e repetitivos, podendo depender de uma rotina bastante estruturada. Neste ponto, o hiperfoco se encaixa perfeitamente; a dedicação a um tema de interesse é algo muito prazeroso.
Para um autista, pode ser desafiador se conectar com os outros a partir do seu hiperfoco sem gerar incômodo
“É aquilo que me acalma, que eu consigo fazer em momentos de estresse, e que eu sinto que preciso”. Assim, a designer e influenciadora Tabata Cristine explica como seu hiperfoco se manifesta em seu caso de autismo em entrevista ao programa Provoca. “É muito legal conversar com um autista porque vai ser uma pessoa que vai conhecer de várias coisas (…) e ele vai ter dar uma aula do assunto que ele gosta com paixão”.
Tabata é autista de nível 1 e também tem TDAH. Ela aborda as dificuldades para estabelecer, de forma funcional, uma comunicação sobre seu tema de interesse – um deles, o autismo. “Ao mesmo tempo que me traz um conforto de ter um momento, de saber muita coisa, ao mesmo tempo tem um lado muito negativo, que é a fama da sabichona, a fama de arrogante, de espertão”, diz.
“Qual o limite da gente falar do que a gente gosta sem parecer que a gente tá querendo se sobressair?”, questiona. Tabata não se furta mais de demonstrar seus interesses. “Eu cansei das máscaras. Eu cansei de não ser o que eu sou. Se você não quer ouvir o que eu tenho para falar, você que saia, porque eu vou falar.”
É possível desenvolver habilidades para que o hiperfoco possa ser um ponto de conexão
Joana alerta que o hiperfoco pode ser prejudicial. “Porque essa criança, desde pequenininha, geralmente vai ficar mais isolada, fora do contexto das crianças, da turminha”.
Como saber quando é hora de buscar ajuda? “Quando os pais observam que essa criança está muito isolada, só querendo saber de um assunto específico, falando sempre sobre as mesmas coisas, repetindo isso fora de contexto, é um ponto de atenção, justamente para ser um alvo do trabalho de intervenção.”
Não existe uma cura para o hiperfoco. Ele também não deve ser reprimido, nem ser motivo de vergonha. Não é um erro a criança dedicar atenção ao que gosta. Por isso, é importante que o indivíduo passe por intervenções para conseguir manter seus interesses, ao mesmo tempo em que desenvolve habilidades para conseguir compartilhá-los sem deixar de criar conexões.
“Quando a gente trabalha a comunicação social, a orientação social, a atenção compartilhada, a atenção visual, a gente está ampliando o foco de interesse, ensinando a comunicação, as trocas interativas. Então a gente espera que isso vá ampliando, que a criança vá generalizando para comportamentos mais funcionais”.
É o caso de tomar remédio? Para o hiperfoco especificamente, não. Mas, Joana diz que “muitas vezes, a gente vai avaliar para ver se esse paciente tem uma comorbidade. Se a gente observa essa comorbidade, aí sim pode se pensar nas intervenções medicamentosas para atenção.”
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work