Qual a prevalência de autismo no SUS?

22/03/2024Pesquisas, Sem categoria0 Comentários

Em outros textos do nosso blog, já discutimos sobre a prevalência de autismo e como ela tem aumentado no decorrer dos anos. O último dado oficial foi divulgado em março de 2023, quando os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos lançaram um documento que mostra uma prevalência de 1 em cada 36 crianças de 8 anos, no ano de 2020, nos EUA.

Sabemos, ainda segundo o CDC, que a prevalência de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) vem aumentando progressivamente ao longo dos anos. Em 2004, o número divulgado pelo CDC era de 1 a cada 166. Em 2012, esse número estava em 1 para 88. Já em 2018, passou a 1 em 59. Em 2020, a prevalência estava em 1 para 54. Publicado em dezembro de 2021, o relatório anterior do órgão mostrava que 1 em cada 44 crianças era diagnosticada com autismo, chegando ao número mais atual de 1 em cada 36 crianças. Leia mais aqui.

O CDC vem rastreando o número e as características de crianças com autismo há mais de duas décadas, em diversas comunidades americanas. O problema, para nós, brasileiros, é que esses dados são todos coletados nos EUA. No Brasil, ainda não temos dados oficiais sobre o número de diagnósticos.

Em 2023, a revista Psicologia USP, publicou um artigo chamado “Incidência de transtorno global do desenvolvimento em crianças: características e análise a partir dos CAPSi”, que buscava medir a prevalência do autismo no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. Os dados da pesquisa abrangeram o período de 2013 a 2019, em crianças de até 12 anos. O estudo incluiu crianças atendidas nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), que além de serem especializados em crianças e adolescentes, geralmente dispõem de uma equipe diversificada (como fonoaudiólogos, profissionais essenciais para diferenciar transtornos de desenvolvimento de transtornos de linguagem), possibilitando um diagnóstico e um acompanhamento mais acurado.

Os CAPS são serviços territoriais de porta aberta que, sob a ótica da interdisciplinaridade, realizam o acompanhamento de pessoas com problemas de saúde mental, bem como de seus familiares. O CAPSi é o serviço especializado para crianças e adolescentes. O atendimento é feito de forma regionalizada no SUS, ou seja, há a necessidade de buscar o CAPS que abrange a área de moradia do indivíduo. Contudo, a regionalização é um grande desafio desde sua criação, o que pode prejudicar a coleta de dados.

No período da pesquisa, a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde utilizada era a CID10, que classificava o autismo infantil (CID10 F84.0) como um dos subtipos de transtorno global de desenvolvimento (CID10 F84). Sob essa classificação eram realizados os diagnósticos e registrados os atendimentos nos sistemas de informação do SUS.

Foram selecionados os registros com diagnóstico principal de transtorno global de desenvolvimento (TGD) segundo a CID 10. O TGD, classificação F84, incluía: autismo infantil (F84.0), autismo atípico (F84.1), síndrome de Rett (F84.2), outros transtornos desintegrativos da infância (F84.3), transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados (F84.4), síndrome de Asperger (F84.5), outros transtornos globais do desenvolvimento (F84.8) e transtornos globais não especificados do desenvolvimento (F84.9). A utilização da CID justifica-se por ser essa a classificação vigente no SUS durante a pesquisa.

O artigo identificou 23.657 crianças com TGD menores de 12 anos atendidas na atenção especializada do SUS. Aproximadamente 10% não deram seguimento ao cuidado. Não foi possível identificar a causa do não seguimento, que pode tanto decorrer da avaliação de que o atendimento pelo próprio serviço é desnecessário quanto estar associada a outros fatores.

Uma pesquisa de 2020 (Lima et al) abordou barreiras no acesso ao CAPSi no Rio de Janeiro e identificou, em grupo focal de familiares de crianças e adolescentes com autismo, que um obstáculo importante para a adesão ao serviço é a acessibilidade. Somam-se a isso os horários e a frequência dos atendimentos e as más condições de conservação do CAPSi.

Durante o período analisado, foi observada uma redução no percentual de primeiros atendimentos, com a maioria das crianças sendo atendidas no município de residência. Além disso, foram identificados alguns poucos casos diagnosticados em vários municípios, indicando dificuldades de acesso ao atendimento para crianças em áreas sem serviços especializados como o CAPSi. Embora este estudo não tenha avaliado as distâncias entre os municípios de residência e os locais de atendimento, a literatura destaca que longos deslocamentos, que demandam mais tempo e custos de transporte elevados, estão associados à baixa adesão ao cuidado oferecido pelo CAPSi.

O estudo mostrou variabilidade na incidência acumulada de TGD no Brasil, bem como a existência de grandes regiões no país sem informação de casos. A avaliação dos atendimentos no território nacional demonstrou que o maior número de crianças diagnosticadas está na região Sudeste, onde há maior proporção de CAPSi. A região Sul, no entanto, foi a única com tendência significativa de aumento no número de crianças diagnosticadas. Apenas Tocantins, Roraima e Acre não possuem CAPSi,

A proporção de crianças diagnosticadas segundo sexo nesta pesquisa – 80% são do sexo masculino – segue a proporção referida na literatura para TEA e para o atendimento total realizado pelos CAPSi.

A avaliação dos tipos de TGD indicou problemas nessa classificação, com elevada proporção de diagnósticos sem a especificação do subtipo de transtorno. Dentre as crianças encaminhadas a um centro de reabilitação, 30% tiveram o diagnóstico de TEA confirmado. Porém, 40,7% não receberam diagnóstico por motivos diversos. O diagnóstico precoce (até três anos de idade) representou pouco menos de um terço dos casos, incluindo os casos em menores de um ano, sendo considerado, ainda assim, baixo.

Nesta pesquisa, os sinais de diagnóstico precoce em crianças com autismo estavam principalmente associados a características de atenção compartilhada, como gestos de apontar, seguir o olhar, falta de resposta ao próprio nome, escassez de sorriso social e atrasos na linguagem. O atraso na fala continua a ser uma característica que desperta grande preocupação entre pais e cuidadores. Estudos indicaram que os déficits na linguagem e comportamentos externalizantes foram os sinais que mais levaram à indicação de crianças com TEA para reabilitação em centros especializados.

O estudo apresentou algumas limitações, como aquelas já mencionadas, e ainda, o fato de ter se concentrado exclusivamente nos casos com diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), deixando de fora os transtornos de linguagem e o déficit intelectual. A inclusão desses outros diagnósticos poderia proporcionar uma compreensão mais abrangente das mudanças diagnósticas. Além disso, a escolha de analisar especificamente os serviços especializados habilitados, como os CAPSi, pode ter influenciado alguns dos resultados encontrados. Não foi abordado o tempo decorrido entre o diagnóstico inicial e o final nos casos que foram reclassificados. Juntamente com a inclusão dos transtornos mencionados, essa análise poderia fornecer uma visão mais completa da dinâmica das modificações diagnósticas. Apesar dessas limitações, o estudo contribuiu significativamente ao estimar a incidência de TGD em crianças de até 12 anos atendidas pelo SUS.

Bibliografia:

Tomazelli, J., Girianelli, V. R., & Fernandes, C. S.. (2023). Incidência de transtorno global do desenvolvimento em crianças: características e análise a partir dos CAPSi. Psicologia USP, 34, e210002. https://doi.org/10.1590/0103-6564e210002

https://www.scielo.br/j/pusp/a/B3gRnSPsjgY5bk8FK6RhS9P/?lang=pt#

Bárbara Bertaglia

Bárbara Bertaglia

Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019

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