Lucas Quaresma: um autista no mundo dos quadrinhos
Jovem designer é autor das ilustrações do Guia para Leigos sobre TEA e da campanha da Autismo e Realidade no Abril Azul 2021
Lucas Quaresma é um jovem autista de 27 anos que se dedica à criação de histórias em quadrinhos. Começou a desenhar ainda pequeno, aos 4 anos, quando já havia sido diagnosticado com autismo e começava a viver ao lado da família uma trajetória de viagens em busca de acompanhamento médico e terapêutico que estimulasse seu desenvolvimento.
Ele é de Belém, onde mora com a família. Por muito tempo, precisou visitar São Paulo e Rio de Janeiro a cada três meses em busca de tratamento. A escolha da família foi um trabalho de reorganização neurológica. Os intervalos entre as viagens passaram, mais tarde, a quatro meses, depois a seis, em uma jornada que durou seis anos.
Projeto HQs do Lucas surgiu em 2016, depois de concluída a faculdade de design de produto
Quando começou com os primeiros rabiscos, Lucas diz que “gostava de desenhar qualquer coisa, a Warner, a Disney, Mandark, Dee Dee, Dexter, castelo da Disney, Big Ben”. Depois da graduação, passou a se dedicar ao projeto HQs do Lucas.
“Em 2016, após me formar na faculdade de design de produto, eu tinha meus desenhos de infância e com a orientação da Thayz [Magnago, idealizadora do projeto], decidimos digitalizar e compartilhar na internet esses desenhos. Depois uniu-se a nós a Emídia [Silva Rebelo, que cuida da arte final] e iniciamos a publicação das revistinhas impressas.”
Mais de 270 cartazes ilustrados por Lucas estão expostos nas estações de metrô e trem de São Paulo
Em meio às comemorações do Abril Azul deste ano, quem passa pelas estações de trem e metrô de São Paulo pode conferir os trabalhos dele. Mais de 270 cartazes da campanha #VocêSabia (uma parceria da Autismo e Realidade com a Secretaria de Transportes Metropolitanos de São Paulo, a ViaQuatro e a ViaMobilidade) trazem esclarecimentos básicos sobre autismo e mensagens de conscientização.
Além disso, Lucas ilustrou O “Guia para Leigos sobre o TEA”, criado para que o público geral possa entender as principais informações sobre o Transtorno do Espectro Autista e também as particularidades de quem vive no espectro.
“Eu planejo cada desenho na minha imaginação. O trabalho de desenvolvimento da cartilha foi concluído em 45 dias e o dos cartazes em 30 dias, entre meus desenhos e a arte final feita pela equipe”, conta Lucas.
Entre as características do autismo de Lucas, estão hipersensibilidade aos sons e apego à rotina
Da série de conceitos básicos relacionados ao autismo está a ideia de espectro, que quer dizer que em cada pessoa o transtorno se manifesta de uma forma particular. No caso de Lucas, ele conta que tinha ecolalia (repetição de palavras fora de contexto) e estereotipias (movimentos repetitivos para lidar com excesso de estímulos). “Eu ficava balançando minha mão e queria fazer a mesma coisa e repetia isso. Não pegava nos objetos, usava sempre a mão da minha mãe e do meu pai.”
Ele gostava de organizar os brinquedos em fila, tinha dificuldade de manter contato visual e de sair da rotina. “Se mudasse minha rotina, eu tinha uma desorganização. Eu fico bravo comigo mesmo e com as outras pessoas”, explica. Além disso, até hoje, prefere escrever a falar por dificuldades de linguagem, e precisa também lidar com sua hipersensibilidade aos sons. “Sinto meu ouvido doer quando ouço sons muito altos ou de cachorros latindo, Hoje, uso fone de ouvido para atenuar isso.”
Especialistas afirmaram que Lucas seria um adulto dependente para tarefas básicas do dia a dia
Lucas foi diagnosticado aos 3 anos com o que na época foi classificado como “autismo clássico encapsulado”, conta a mãe, Eliane Moura Quaresma. “Ele tinha todas as características do autismo – que a gente nem sabia o que era na época”, diz.
Quando pequeno, Lucas costumava ficar parado fazendo uma única coisa o tempo todo. Se interrompido, esperneava. “Se não estava nessa concentração exagerada, que eu achava estranho, era só arrumando, arrumando. Se a gente picasse papel, ele arrumava papel de um lado pro outro. Fazia isso com a areia da praia também”, relembra Eliane. O filho emitia sons guturais, que ninguém conseguia entender. Com menos de um ano, não segurava objetos, não interagia com brincadeiras, não batia palmas junto com alguém que tentasse estimulá-lo. Também não atendia ao próprio nome ou aos dos pais.
No contato com especialistas, Eliane relata que chegaram a afirmar que o filho se tornaria um adulto sem condições, inclusive, de higiene pessoal. “Quando cheguei nos médicos ele tinha 3 anos de idade, mas cognitivamente ele tinha muito menos que isso.” Apesar do veredito, ela manteve a esperança. “Eu olhava pro meu filho desde pequeno e eu achava um potencial nele, que ele tinha condições de aprender, de evoluir. Não de chegar aqui, chegar ali, mas sim evoluir. Capacidade de melhorar, capacidade de se qualificar em alguma coisa. Eu achava isso, pensava assim.”
Inclusão de Lucas passou por luta pela adaptação na escola e também faculdade, com apoio da Justiça
A luta para garantir a inclusão de Lucas não só englobou as viagens periódicas, mas o diálogo constante com as instituições de ensino, da escola à faculdade e o apoio do Ministério Público para que os direitos dele fossem respeitados.
Na escola, a semana de prova era um problema, porque reorganizava toda a rotina e desorganizava o Lucas. “A escola teve de se adaptar pra, por exemplo, não fazer que o Lucas tivesse uma crise porque naquela semana não ia acontecer o que era programado. Muita coisa a escola foi adaptando e muita coisa o Lucas mesmo foi se adaptando”, conta a mãe. “A gente foi buscando o melhor possível pra lidar com esse estresse que era causado pra ele com qualquer mudança de rotina na cabeça dele.”
Na faculdade, uma das lutas foi para que os professores aceitassem manter um diário de classe, onde os pais pudessem conferir o que foi passado e dar suporte para que o filho pudesse acompanhar a programação. Os colegas de classe ajudaram a família em todo o processo, contando à mãe o que ele não conseguia pegar e o que os professores deixavam de fazer. A família recorreu à Justiça, com suporte do Ministério Público, para que os profissionais se adequassem a uma rotina favorável a Lucas.
Na faculdade, Lucas viveu episódio inusitado em que precisou de apoio e de criatividade para superar sua rigidez
Um episódio específico ocorrido na faculdade ajuda também a ilustrar como o pensamento autista foge do óbvio neurotípico, e como é possível adaptar as regras ao modo de pensar de um aluno com autismo. Em uma prova de segunda chamada, após a exigência por assinalar a alternativa correta de cada questão, Lucas precisou de apoio. Isso porque o enunciado mudou, e as questões passaram a exigir que a resposta errada fosse assinalada – algo que o pensamento de Lucas não aceitou.
“A coordenadora perguntou se ele não sabia o restante da prova e ele disse que sabia, assim do jeito dele. Então com muita adivinhação, e perguntando de várias formas, ficou claro que sabia, somente não queria aceitar a mudança de comando das questões. Ele começou a responder quais opções de resposta eram corretas nas questões anteriores e quando houve a mudança de comando pedindo as incorretas, ele parou”, descreve Eliane. A solução foi permitir que ele pudesse assinalar todas as questões corretas e deixar sem marcação apenas a errada. Tirou 10.
“Veja como a forma de ver o mundo e resolver problemas são peculiares e seguem uma lógica própria que surpreende comparada a nossa visão da realidade. O simples pensar do Lucas é diferente”, reflete Eliane.
Lucas espera que projeto de quadrinhos cresça para levar esperança e informação a mais pessoas
Quando questionado se já enfrentou preconceito, Lucas diz que não. “Nunca percebi ninguém rindo ou fazendo gracinha.” Em casa, não foi visto a partir do que não podia fazer, mas do que era possível. “Se a gente puder iluminar as mentes para que olhem por esse lado da capacidade e não da incapacidade, que é fácil de ver, a gente pode conquistar mais pessoas com essa mesma visão. E, inclusive, mudar a visão de profissionais que já botam o olho, rotulam: ‘esse aqui não vai desenvolver’. Eu ouvi isso na lata assim, é difícil.”
Hoje ilustrador, Lucas contou alguns de seus planos para o futuro. Ele espera que o projeto HQs do Lucas fique cada vez mais conhecido. A meta é conseguir levar esperança e informação a mais pessoas. “Esperamos ter também novos produtos digitais que incentivem o desenvolvimento cognitivo de outras pessoas”, afirma.
A quem também sonha em trabalhar como desenhista, ele recomenda desenvolver suas habilidades. Sobre o Dia Mundial do Autismo, a mensagem é a seguinte: “Esse dia do autismo está sendo muito diferente para mim devido à pandemia, eu não saio de casa desde o início dela por medo de me contaminar. Temos que ter força para superar isso. Um grande abraço para todos e muita saúde, se puder fique em casa como eu.”
Lucas é gentil e contribui demais para o fortalecimento do tema da inclusão na sociedade.
Parabéns Lucas!