Jolene Stockman: Como ser normal (e as razões para não ser)
Escritora diz que as pessoas têm medo de ser diferentes, mas ninguém se empolga em ser normal
“Ninguém fica empolgado em ser normal e ainda assim temos tanto medo do diferente”. Assim começa a fala da mestre em programação neurolinguística e escritora Jolene Stockman, em sua palestra no TedxPlymouth, em 2018. Neoelandeza de ascendência maori, ela só recebeu o diagnóstico de autismo ao completar 36 anos. Até então, se sentia estranha, longe do que pudesse ser considerado como normal.
Ela questiona essa ideia de normalidade. “Sabe o que você nunca ouve? Conversas assim: ‘Como está indo sua filha na escola?’, ‘Ah, ela é comum. Nós estamos tão orgulhosos!’. Ou então: “Tenha um ótimo dia na escola, filho. Seja normal’.”
Jolene tentava se adaptar a partir das microexpressões de rejeição que a faziam se perceber como estranha
Jolene conta que sempre foi considerada – e considerou a si mesma como – estranha. Era exageradamente sensível. “Quando bebê, eu chorava em comerciais de TV tristes. Quando criança, eu escrevia roteiros de horror. Mas desmaiei na escola quando ouvi a história da crucificação.”
Ela também percebia sua diferença por meio de alguns sinais de rejeição e, a partir deles, se adaptava para que pudesse destoar menos. “Você sabe como pode dizer que alguém é diferente? Bom, nós podemos dizer que vocês podem dizer. Vocês demonstram isso com linguagem corporal, com suas microexpressões, as palavras que vocês usam, todos os pequenos sinais de rejeição que venho recebendo e me adaptando a eles desde que era uma criança, pra vocês não notarem quão estranha eu sou e pensarem que sou normal. E isso é exaustivo”, desabafou Jolene.
Desempenho de Jolene na escola era bom, ainda que nunca se percebesse como alguém que se encaixasse
Jolene ia bem na escola e tinha um número considerável de amigos. “Mas por dentro, eu sabia que eu era diferente, alienígena. Eu não era real. Eu não era como os outros, eu não era como ninguém. Enquanto humanos, nós procuramos por semelhanças. Biologicamente, é como fomos desenhados. É uma questão de sobrevivência. Porque o oposto de normal é diferente e diferente é a morte”, diz na palestra.
A situação de Jolene é muito parecida com a de outras mulheres e meninas diagnosticadas tardiamente. Aparentemente, não parecem ter o transtorno e até mesmo os testes de diagnóstico podem falhar em detectá-lo. Foi o caso, por exemplo, da jovem irlandesa Niamh McCan. Niamh tem um irmão mais novo autista, diagnosticado ainda na primeira infância, algo que ela só conseguiu aos 16, depois de uma crise intensa.
Diagnosticada tardiamente, Niamh McCan adotava o método de copia e cola para ser vista como normal
Niamh conta que um comportamento que chama de “copia e cola” a ajudou a sobreviver sem que destoasse tanto da maior parte das crianças. A imitação de pessoas típicas (que não são autistas) foi algo que ela sempre adotou de forma espontânea, para se encaixar. “Eu não pulava. Eu não abanava as mãos. Eu era tímida, mas uma estudante dedicada. Tirava boas notas e não causava problemas. Mas o que eu fazia estava escondido debaixo do tapete”, conta.
Além de Niamh e Jolene, há outros tantos casos de mulheres que, por conseguirem utilizar recursos capazes de mascarar o transtorno, sofreram muito até receberem o diagnóstico. A cada quatro homens diagnosticados com autismo, há apenas uma mulher.
Carrie só foi diagnosticada após contrair cegueira temporária em tratamento seguido a um eletrochoque
Um dos casos mais gritantes é o da britânica Carrie Beckwith-Fellows, que só foi descobrir que era autista sete anos após ficar temporariamente cega, desistir de uma internação em um serviço de atenção à saúde mental e ir em busca de um diagnóstico mais adequado. Por muitos anos, o autismo de Carrie foi confundido com outros distúrbios. A cegueira, que durou dois anos, foi provocada por uma aplicação de lítio, a única alternativa encontrada por médicos depois de tentarem tratá-la com eletrochoque.
O desempenho em nível de excelência nas atividades profissionais também levanta dúvidas sobre o diagnóstico. Formada em jornalismo, Renata Simões atua como diretora, produtora, editora, roteirista e ainda como apresentadora e repórter, com trabalhos em canais de abrangência nacional, como TV Cultura e Rede Globo. A carreira foi construída justamente em uma área com a qual os autistas costumam ter profunda dificuldade, a comunicação.
Mulheres com alto rendimento profissional correm o risco de verem seu diagnóstico ser subestimado
Mesmo quando o diagnóstico já está confirmado, amigos e outras pessoas do círculo de convivência podem questionar a existência do transtorno, como conta Renata. “Com algumas pessoas faz sentido dividir [o diagnóstico] e, com outras, não. Porque tem gente com quem você divide e a pessoa tem a pachorra de falar ‘não, você não é’.
A musicista sueca Elizabeth Wiklander também exerce um trabalho em nível de excelência. Ela é violoncelista na Orquestra Filarmônica de Londres. Para conseguir seu diagnóstico de autismo leve, teve de pesquisar por conta própria e colocar em cima da mesa do médico todo seu material de estudo. “Já li tudo isso. Eu tenho essa condição. Por favor, me escute”, precisou dizer.
Há, no entanto, autistas para quem o diagnóstico explica as dificuldades de adaptação ao trabalho
Já a humorista Hannah Gadsby não teve a mesma sorte. Ela nunca conseguiu se adaptar a um emprego formal. Por ter dificuldade de preencher formulários, nunca conseguiu se candidatar a uma vaga. Acabou descobrindo sua profissão por acaso, em um concurso de stand-up comedy. Sempre se sentiu deslocada, mas só foi entender o que passou quando recebeu o diagnóstico, depois dos 30 anos, assim como Jolene, que também sofreu no mercado de trabalho.
Jolene conta que já foi demitida por falta de ritmo e que, em uma ocasião, chorou debaixo da mesa. Ela também passou apuros por desafiar a autoridade de um chefe, e sofreu reações físicas em um episódio em que mentiu. “Se eu soubesse que fossem sinais comuns de autismo, se eu soubesse que 80% de nós não trabalham, eu teria sido mais gentil comigo mesma enquanto tentava descobrir como me encaixar?”, questiona.
A partir de um treinamento específico, Jolene aprendeu a desenvolver sua forma de se comunicar
Um dia, no final da adolescência, Jolene decidiu que queria aprender a se comunicar melhor e passou a fazer parte do Toastmasters, uma organização dedicada à formação de lideranças em que é necessário desenvolver a capacidade discursiva por meio de apresentações em público. “Toda semana eu ia aos encontros. Toda semana eu esperava um acidente de carro. Não um dos grandes, só o suficiente para uma rápida passada no hospital e voltar ao meu dia sem discurso público”, brinca. “O acidente de carro nunca aconteceu. Mas eu, sim, consegui melhorar. Ainda me sinto completamente paralisada antes de falar, mas o sentimento agora é mais empolgação do que medo.”
Jolene faz uma provocação: “Quem decide quais sentimentos são normais ou apropriados?”. Ela relembra o conceito de neurodiversidade que, segundo explica, “é o entendimento de que os seres humanos são diversos em suas funções cerebrais”.
Termo que nomeia os autistas em maori é próximo ao que se entende por neurodiversidade
A palavra em maori que significa autista nos dá um exemplo do que quer dizer. O termo “takiwātanga” significa “em seu próprio tempo e espaço”. Rápido ou devagar. Com abraços, ou sem ser tocada. “Esse apreço à diversidade faz toda a diferença. Não existe uma caixa única ou várias caixas para colocar alguém que diga autista, indígena, ou qualquer outra coisa. Nós somos um caleidoscópio muito específico, com maneiras individuais de processar o mundo”, disse em entrevista à Say Magazine.
O entendimento de neurodiversidade, diz Jolene, inclui Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Síndrome de Tourette, entre outros distúrbios. É como diferentes sistemas operacionais de computador. Alguns usam MAC, outros, Windows ou Linux. “Não é ruim, apenas diferente.”
Sem diagnóstico, Jolene ainda se sentia culpada por suas sensações e comportamentos
No entanto, sem compreender a razão da diferença, a pessoa tende a culpar a si mesma. “Ninguém mais quer vomitar quando os horários mudam. Ninguém mais prefere arrancar a própria pele a usar um jeans duro. Ninguém mais surta porque o supermercado é um pesadelo. Ninguém é vacilante em contato visual (…) Claramente, eu era defeituosa. Era fraca, estava sozinha e teria apenas que me esforçar mais”, relata. “Eu finjo que as coisas não me machucam, que elas não fazem minha pele coçar. Luzes muito brilhantes, sons muito altos. Contato visual parece físico, toques físicos parecem uma tortura, e então há roupas, móveis, textura, comida.”
Ela conta que se forçou, por exemplo, a aprender a dirigir, apesar de ser reprovada algumas vezes no teste. “Eu me treinei para superar todos os sinais de estresse. Então, quando meu corpo disse ‘Todo mundo dirige, mas eu não quero dirigir’. Respondi ‘Faça’. ‘Todo mundo sai para curtir com outras pessoas, eu não quero’. ‘Faça’. Eu me treinei para superar os sinais de estresse e eles se acumularam.”
Ao receber o diagnóstico, a primeira reação foi duvidar, por não se parecer com o estereótipo de Rain Man
Um dia, ela sofreu um colapso dentro de um shopping center. Na sequência, dormiu por dois dias. Só então, veio o diagnóstico. A primeira reação foi: “Não pode estar certo. Eu conheço autismo, eu vi Rain Man. Eu não sou assim”.
Sucesso do cinema norte-americano do final da década de 1980, o filme Rain Man contava a história de um adulto autista. Foi o primeiro filme de grande repercussão a abordar o tema e contribuiu para a criação de um estereótipo em torno do autismo. O personagem Raymond, além de TEA, possuía Síndrome de Savant, que lhe conferia uma habilidade de memorização e de cálculo matemático ímpar, ao mesmo tempo em que mantinha uma profunda dificuldade de socialização.
Autismo de Jolene é de alto funcionamento, mas ela critica o termo por parecer reduzir suas dificuldades
Porém, como sabemos atualmente, essa é apenas uma das formas como o autismo se manifesta. Por se tratar de um espectro, o autismo ocorre de forma diferente em cada pessoa.
O tipo de autismo de Jolene é o leve, também chamado de autismo de alto funcionamento. Ela, no entanto, questiona o termo. “Isso é péssimo. Na mesma proporção em que dizer que alguém é de baixo funcionamento descarta totalmente suas forças, dizer que sou de alto funcionamento põe de lado minhas crises, ignora todas as maneiras que eu criei para lidar com meu estresse, deixa de olhar para milhões de pequenas decisões e passos e técnicas que eu usei para sobreviver, me passando por alguém normal”, critica a escritora.
Para Jolene, o alto funcionamento não é algo natural, mas tem um custo psíquico. Na visão dela, entender que uma pessoa autista é de alto funcionamento pode parecer que ela tem facilidade de “religar quem realmente é para o conforto da maioria”. “É como tornar todo mundo canhoto”, compara.
Lutar contra instintos para parecer normal tem custo psíquico que, para Jolene, pode ser dormir por dias
“Eu posso parecer normal. Posso usar meu cérebro dessensibilizado para conduzir meu corpo. Sorrir, acenar, falar. Mas eu vou pra casa e durmo por dois dias, cinco dias, depois disso. Eu consigo me forçar. Mas devo? Eu ficaria quebrada por muito tempo porque tudo em mim luta contra o meu corpo, me dizendo pra desacelerar.”
A partir do diagnóstico, a luta contra os próprios instintos para parecer normal aos outros deixou de fazer sentido para Jolene. O rótulo de autista trouxe autocompreensão e entendimento dos seus limites. “É possível fazer muito mais com a energia canalizada para parecer normal, e direcioná-la para fazer o que amamos e o que fazemos bem”, diz a escritora.
Jolene recorre à cultura maori para dizer que estamos juntos, e afirma: nossa existência redefine o normal
Em sua fala, a escritora se dirige a quem ainda tenta lidar com um sentimento de inadequação. “Eu também gostaria que todos soubessem que, porque você se sente estranho e só porque você se sente diferente, isso pode significar que você está no lugar errado. Você pode não pertencer ao seu local de trabalho, à sua classe da escola, à sua cidade, à sua família, mas você pertence a este mundo”, afirma.
“Só porque alguém é autista, não significa que tem um talento especial. Você tem um talento especial porque você é humano. Nós todos somos. Você se encaixa e você pertence a esse mundo. Há um termo maori que remete a isso: he waka eke noa, nós estamos juntos”.
Jolene acrescenta uma ideia, a de que a existência de cada um ajuda a redefinir o que é percebido como normal. “Você não pode dizer só de olhar que eu sou maori, mas eu sou. Você não pode dizer só de olhar, que eu sou autista, mas eu sou. Você não pode dizer nada, sobre ninguém, só de olhar, nunca mais. Não há normal. Não há mundo real, só o que nós decidimos e o que nós criamos. Você pode ser estranho e você pode ser diferente, mas você pertence a este mundo. Sua existência, nossa existência reescreve o normal.”
0 comentários