Autistas não verbais e suas formas de expressão
Há pessoas no espectro que não utilizam a linguagem falada para se comunicar, mas podem transmitir seus sentimentos e pensamentos de várias formas
Ser uma pessoa não oralizada não quer dizer não ser capaz de se comunicar. O autismo é um espectro e fazem parte dele muitas pessoas que não se comunicam verbalmente, mas podem compreender os outros e se expressar de inúmeras maneiras.
Uma delas é pela escrita. Em sua primeira biografia, o alemão Birger Sellin, autista não verbal, descreve sua condição. “Eu quero que todo mundo saiba que crianças autistas não são burras como as pessoas frequentemente pensam eu não sou uma pessoa real sem a escrita porque isto é meu único meio de expressão que eu tenho e este é o único meio de mostrar como eu penso e eu faço isto também mas isto ainda é muito difícil eu acho isto muito exaustivo”.
Jornalista que tornou pública a escrita de Birger Sellin se espantou ao ver o comportamento do jovem pela primeira vez
A história de Birger veio a público quando um advogado amigo da família ligou para o jornalista Michael Klonovsky para contar sobre a história do garoto. Klonovsky se emocionou com textos de Birger, decidiu conhecê-lo e entrou em choque ao se deparar com a aparência e o comportamento do rapaz: ele se autoagredia, berrava e não conseguia estabelecer um diálogo. Ao escrever, no entanto, mostrava que entendia o que acontecia, mas não dominava suas reações. “Este é o único meio de mostrar como eu penso”, afirmou Birger sobre escrever.
“Ao contrário do que se imaginava, existem autistas designados de baixo funcionamento, com dificuldades de exercer diversas atividades básicas do dia a dia, como se alimentar sozinhos, utilizar o banheiro, pegar um objeto, mas que podem se expressar fluentemente pela escrita”, conta a psicóloga Marina Bialer em artigo para a Autismo e Realidade.
Naoki Higashida, escritor não oralizado, compara sua memória a uma piscina de bolinhas, e a dos típicos a uma fila
Um dos mais populares autistas não verbais que se comunicam pela escrita é o japonês Naoki Higashida, autor de O Que Me Faz Pular, publicado em mais de 30 idiomas.
No livro, ele responde a perguntas de pessoas neurotípicas sobre sua condição, como “Por que você faz as mesmas perguntas o tempo todo?”, “Por que você nunca para quieto?” ou “Por que você pula?”. Em um dos textos, ele compara sua memória a uma piscina de bolinhas, enquanto a de um neurotípico seria mais como uma fila.
Logo no início da obra, Naoki defende que o autismo seja considerado apenas um tipo de comportamento. O estigma que pesa sob os autistas, segundo ele, faz com que sinta a desagradável sensação de ser um estorvo para os outros. “Não consigo reagir de forma apropriada quando me dizem para fazer uma coisa e, quando fico nervoso, eu fujo, não importa onde esteja.”
Hoje autor de mais de 20 livros, Naoki não foi aceito pelas escolas na infância. Com a ajuda de uma professora e da mãe, aprendeu a soletrar palavras usando uma prancha de alfabeto composta pelos 40 caracteres básicos do “hiragana” japonês. Ele apontava símbolo por símbolo para escrever. Naoki conta que também é capaz de digitar em um teclado de computador, mas fica travado ou obcecado por certas letras.
Tecnologia assistiva faz com que o autista possa se comunicar e manter interações sociais
A comunicação alternativa desenvolvida pela mãe para que Naoki pudesse se expressar pode ser também aplicada de outras formas. Há uma série de recursos de Tecnologia Assistiva (TA) que permitem que o autista possa se comunicar e estabelecer interações com as pessoas ao seu redor.
Um deles é a Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA), que auxilia pessoas não oralizadas e também autistas que não adotam uma linguagem verbal compatível com sua idade.
Um dos tipos de CAA é o Sistema de Comunicação por Trocas de Figuras (PECS). Este sistema pode ser utilizado com cartões com imagens que descrevem conceitos básicos, por exemplo. Mas pode chegar a incluir também o uso de aplicativos que permitem criar frases complexas. O ideal é que a criança conte com uma equipe multidisciplinar que possa guiá-la na construção de interações a partir destes sistemas.
Aplicativos facilitam a vida de quem usa comunicação alternativa e ampliada
Os cartões de imagem podem ser substituídos por aplicativos como o LIvox e o Matraquinha, ambos desenvolvidos por familiares de pessoas com deficiência.
O Matraquinha surgiu da tentativa de digitalizar uma pasta pesada de PECS que os pais tinham de carregar pra cima e pra baixo para entender o filho autista. O app armazena cartões de figuras estáticas que, ao serem tocadas, emitem o som correspondente.
Com função similar, o Livox faz com que os símbolos selecionados se transformem em comandos de voz. Por mais que pareça simples, permitir que uma pessoa não verbal comunique “Eu gosto de comer pizza com catchup”, por exemplo, demanda múltiplas funções de um sistema de inteligência artificial.
Segurança também é preocupação de mães e pais de autistas não oralizados
A preocupação em torno da inserção e da comunicação de pessoas não oralizadas vai muito além de garantir a expressão de suas necessidades básicas. Ela precisa também garantir sua segurança pessoal.
Já falamos neste blog sobre interseccionalidades, que são a convergência de preconceitos vividos por algumas pessoas. Os autistas negros lidam com racismo e capacitismo de maneira em que os dois preconceitos se cruzam.
A explicação pode ficar mais clara quando damos o exemplo de Luciana Viegas, autista e ativista na luta antirracista e anticapacitista. Luciana tem um filho autista não verbal e uma de suas principais preocupações é ensiná-lo como lidar com situações de abordagem policial – que faz parte da rotina jovens negros no Brasil. No país, pessoas negras são 84,1% das vítimas mortas por policiais, segundo dados de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Já ensino comandos policiais ao Luiz, pois o mais importante é que ele volte vivo para casa”, afirmou Luciana em artigo para Autismo e Realidade.
Fitas e The Black Balloon: representação de autistas não verbais na tela da TV
A representação de autistas em filmes, livros, desenhos animados e outras peças culturais é essencial para o combate ao capacitismo, que é o preconceito contra pessoas com deficiência. Ainda que a produção sobre autismo venha aumentando, é ainda raro encontrar produções sobre autistas não verbais.
O filme australiano The Black Balloon conta a história de uma família de classe média formada por um jovem adulto que é autista não verbal, seu irmão mais novo adolescente, o pai militar e a mãe, grávida. A trama mostra como o caçula passa a aceitar a condição do mais velho, em um momento em que a família acaba de mudar de cidade e a mãe precisa de cuidados especiais.
O desenho animado Fitas, produzido pela Pixar, mostra a relação de um garoto típico com uma menina autista não oralizada durante um breve passeio de barco cheio de descobertas. Antes contrariado por ter a garota como parceira, o menino desenvolve uma conexão e começa a entender como se relacionar com alguém que se expressa de formas não convencionais.
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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