História relata alívio de uma jovem francesa que compreendeu sua maneira de viver após ser diagnosticada autista

“Se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele passará a vida acreditando que é estúpido”. A frase está em um cartaz estendido em uma das paredes da casa de Marguerite, protagonista da HQ “A Diferença Invisível”, lançada na França, em 2016.

Marguerite poderia ser comparada a um peixe que sempre se sentiu infeliz por nunca conseguir subir em uma árvore – ou seja, alguém que não percebia quem realmente era.

Ela é uma pessoa apegada à rotina. Gosta de cumprir os mesmos rituais: ir à mesma padaria todos os dias, pedir o mesmo pãozinho, passar pela mesma livraria, cumprir da mesma forma o trajeto que lhe é familiar. Nunca se sentiu bem em festas ou encontros de grupos e sempre foi sincera demais para estabelecer uma conversa sem desagradar alguém com seus comentários.

Além disso, sempre foi uma pessoa muito sensível. Para dormir com o namorado, nada de dividir a cama. Cada um deitava na sua, porque o contato pele a pele não permitia que ela conseguisse dormir. Sons enfrentados de forma rotineira pelos habitantes de qualquer cidade grande para ela poderiam ser um grande tormento.

Por muito tempo, se sentiu e foi tratada como uma pessoa muito esquisita. Até que, aos 27 anos, finalmente descobriu que seu jeito de viver fazia todo sentido. Não havia nada de errado. Sua visão sobre si mesma mudou quando foi diagnosticada com autismo.

 

Ela já havia passado por vários psicólogos, mas nenhum foi capaz de levantar suspeita sobre o diagnóstico de autismo

Marguerite é, na verdade, a versão em quadrinhos da jovem francesa Julie Dachez, autora do livro. Julie passou pelo mesmo processo de Marguerite e decidiu escrever a HQ para conscientizar as pessoas sobre o transtorno. A obra foi escrita com o apoio de Mademoiselle Caroline, que fez as ilustrações. As duas se conheceram na livraria de Caroline, por onde Julie passava todos os dias.

Foi com livros disponíveis ali que Julie começou a entender o que é o autismo. Ela precisou buscar ajuda por conta própria porque, ao longo da vida, nenhum dos psicólogos que procurou foi capaz de cogitar o diagnóstico.

Julie conseguiu levantar a possibilidade de ser autista após recorrer a uma busca no Google para compreender a razão de uma crise intensa. Ela e o namorado ficariam a semana na casa de amigos dele, em uma cidade vizinha. Mas, no meio do caminho, Julie entrou em colapso. Chorou, se desesperou. Não conseguia se sentir bem em ter que dormir em um lugar diferente e socializar o dia inteiro com pessoas desconhecidas. Os dois voltaram para casa e Julie foi tentar entender o que tinha acontecido.

Após a busca e a suspeita, ela buscou ajuda especializada. Um novo psicólogo e uma série de avaliações verificariam se estava certa. Veio, então, a resposta: Julie era autista. Seu transtorno invisível foi, enfim, percebido.

 

Após a alegria de se compreender melhor, veio o susto provocado pela reação das pessoas e as mentiras em que acreditam

A primeira sensação foi de alívio. O centro onde foi diagnosticada a colocou em contato com um grupo de autistas. As conversas com os novos colegas fizeram com que não se sentisse mais sozinha. Sua percepção do mundo e seus incômodos eram, enfim, compartilhados e compreendidos. A indignação à forma como eram tratados também.

É comum que autistas diagnosticados na idade adulta sintam esse alívio de finalmente perceber que sua forma de viver faz sentido. O relato é muito parecido com o da comediante Hannah Gadsby, dos jornalistas Tiago Abreu e Renata Simões e da personal trainer Priscilla Peres.

Após a alegria de Julie com o reconhecimento de si mesma, veio o choque frente a reação das pessoas. Ela ouviu todos os clichês que demonstram falta de conhecimento sobre o transtorno.

Ainda há pessoas que acreditam que remédios podem curar o autismo, que ele pode ser causado por vacinas, que o espectro é uma doença e que só é autista quem “parece” ser (ou seja, quem se encaixa em estereótipos de rejeição ao contato social e de intensa necessidade de suporte). Tudo isso é mentira.

 

Não existe um autista igual ao outro; estereótipos sobre o transtorno prejudicam o acesso ao diagnóstico

O autismo não é uma doença, é uma condição – na lei brasileira, é definido como uma deficiência. Como o autismo não é uma doença, não tem cura. Os autistas não precisam de remédios que sanem sua condição, mas de acompanhamento terapêutico que permita o desenvolvimento máximo de suas habilidades.

Também não é verdade que alguém possa parecer autista. Primeiro, porque não há um fenótipo que permita identificar os autistas – como acontece nos casos de síndrome de Down. Segundo, que o autismo se manifesta de formas múltiplas, infinitas. Há tantas manifestações de autismo quanto autistas no mundo, cada um à sua maneira. É por isso que chamam o autismo de espectro. O nome médico desta condição é Transtorno do Espectro Autista (TEA).

 

Com mais habilidades sociais, mulheres costumam ser menos diagnosticadas que homens

Um ponto de atenção importante sobre o livro é que, na época em que Julie foi diagnosticada, ainda se utilizava a classificação como síndrome de Asperger. Atualmente, no entanto, este diagnóstico caiu em desuso e é considerado apenas como parte do espectro autista. Quem, no passado, foi diagnosticado com síndrome de Asperger, hoje é simplesmente chamado de autista. A classificação atual do autismo considera três níveis. Os antigos Asperger são hoje considerados autistas de nível 1, que é o grau que menos precisa de suporte.

Outro ponto é que, justamente por exigir menos suporte, pode ser mais difícil para pessoas com autismo de nível 1 receberem o diagnóstico. No caso de Julie, entra mais um agravante: mulheres são subdiagnosticadas. Atualmente, considera-se que 1 a cada 36 crianças é autista. Mulheres são mais estimuladas a desenvolverem suas habilidades sociais e são mais propensas a disfarçar suas manifestações do autismo, mesmo que sofram crises intensas ao chegar em casa. Para cada quatro meninos com diagnóstico, há apenas uma menina.

No livro, são citados vários episódios em que desacreditam que ela seja autista porque consegue olhar nos olhos dos outros. Esta é sim uma característica do autismo e um ponto de observação para mães e pais ao longo do desenvolvimento dos filhos na infância. Porém, nenhuma característica vale para todo autista. Cada um é único e manifesta o transtorno à sua maneira. Além de invisível, o autismo é múltiplo. Precisamos estar abertos para compreendê-lo em todas as suas formas.

A obra é indicada como referência por influenciadores com TEA, como o adolescente Pedro Melim, a neurobióloga Ju Maia e o psicólogo Lucas Pontes.

Publicado no Brasil em 2017, “A Diferença Invisível” está disponível nas principais livrarias e plataformas digitais. No site da editora, o preço sugerido é de R$ 64,90 para a versão física e R$ 45,90 para a digital.

 

Escrito por Clarice Sá, Teia.Work