‘Achei que, 40 anos depois, as coisas estariam mais avançadas’
Marisa Fúria relembra a trajetória da Associação Amigos dos Autistas (AMA) de São Paulo
Se hoje o diagnóstico de autismo em um filho ainda gera dúvidas, angústias e muita incerteza sobre o futuro, há 40 anos a notícia era acompanhada, sobretudo, de desconhecimento. Dava para contar nos dedos o número de médicos ou psicólogos familiarizados com o transtorno que não tem cura e é caracterizado por comprometimentos nas áreas da linguagem, do comportamento e da comunicação.
Ajuda especializada, então, era raridade, lembra Marisa Fúria, 76 anos, uma das fundadoras da Associação Amigos dos Autistas (AMA) de São Paulo. “E tudo o que eu queria era uma pessoa que ensinasse as coisas ao Renato”, lembra, referindo-se ao terceiro filho, hoje com 46 anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) desde os dois.
Celebrando quatro décadas de funcionamento, a entidade foi e ainda é um alento para muitas famílias impactadas pelo diagnóstico e sem recursos para o tratamento, cada vez mais caro e restrito a clientes de planos de saúde. Ao olhar para trás, Marisa relembra a luta ao lado do marido, Norberto Silva (já falecido), e de outros familiares de crianças com TEA em busca do básico: informação.
Início da AMA-SP é marcado pela busca por mais conhecimento sobre diagnóstico e terapias para autismo
Em 1983 não havia sequer literatura em português sobre o transtorno. “Tivemos de ir para o exterior atrás de especialistas e materiais que pudessem ajudar. A Terapia Comportamental Aplicada (ABA, na sigla em inglês) ainda não era reconhecida cientificamente nem havia quem a aplicasse no Brasil”, destaca.
A primeira década da AMA foi marcada por essa busca incessante pelo conhecimento. Mas não só. Antes mesmo de completar um ano de atividade, Marisa e outros pais iniciaram um trabalho de acolhida no quintal de uma igreja batista. As crianças eram indicadas pelo psiquiatra Raymond Rosenberg, que havia estudado autismo nos Estados Unidos e reunia em seu consultório um grupo de pais interessados em ensinar seus filhos e quem mais pudessem.
Devagar, a AMA foi crescendo. Em 1986, a associação alugou sua primeira sede, na Rua do Paraíso, na zona sul de São Paulo, e não parou mais. Os serviços de educação e residência visitados na Europa dois anos depois ampliaram o leque de interesse dos fundadores, que passaram a perseguir o objetivo de abrir um centro residencial em São Paulo para oferecer autonomia a jovens com autismo, como Renato.
O sonho se concretizou em 1994, com a abertura da AMA Parelheiros, um sítio no extremo sul da cidade que funciona até hoje como escola e moradia. Renato, o filho de Marisa, é um dos moradores do local, que atende cerca de cem pessoas. “É direito dele ter uma casa, ter a sua independência”, conta a mãe, que recebe o filho em casa a cada 15 dias e segue ativa na defesa dos direitos dos autistas.
Organização tem parceria com governo para atendimento de autistas em São Paulo
A AMA tem hoje quatro unidades – além de Parelheiros, tem outros três endereços no bairro do Cambuci, na região central. Também atende, em parceria com o governo estadual de São Paulo, pacientes do Hospital Psiquiátrico Pinel, em Pirituba, na zona norte.
Os serviços da AMA avançaram, mas o poder público, segundo Marisa, não acompanhou o mesmo ritmo. “Acho que, 40 anos depois, era para tudo estar mais avançado, né?”, lamenta. “E lei é o que não falta. O que falta é os governantes começarem a fazer o que tem de ser feito, como centros de referência, terapia, residências”, completa. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
Como e por que surgiu a AMA?
Da minha parte foi por causa do Renato, meu terceiro filho. Ele nasceu em 1977 e, em 1980, de repente, ele parou de falar e de cantar. E ele cantava Roberto Carlos. Além disso, começou nessa época a bater com a cabeça no chão. Levamos à psicóloga e ela foi brilhante. Na primeira consulta ela já deu o diagnóstico de autismo infantil. Era 1980. Neste aspecto nós tivemos muita sorte. Quantos pais hoje não conseguem diagnóstico?
Fundadoras da AMA-SP buscaram experiências de terapias nos EUA e Europa
O que se oferecia para autistas naquela época?
Nada, e tudo o que eu queria era uma pessoa que ensinasse as coisas ao Renato. Ele estava matriculado em uma escolinha, que nos procurou para dizer que não sabia como lidar com ele. Contratamos então uma professora extra e começamos a nossa luta. Depois, em uma escola especial, tivemos a indicação de procurar pelo doutor Raymond Rosenberg, que havia trazido experiências novas de uma viagem aos Estados Unidos. Foi quando conhecemos outras famílias e tivemos a ideia de criar uma associação com o objetivo de pesquisar tratamentos para os nossos filhos. Foi assim que nasceu a Associação dos Amigos dos Autistas, em 1983.
E muita gente se interessou?
Olha, cerca de 500 pessoas participaram logo do primeiro encontro que organizamos. Apesar de todas as dificuldades da época – não tinha celular, internet, nada -, nós conseguimos trazer o Angel Rivière, um psiquiatra espanhol que estudava autismo. A intenção era buscar conhecimento para os nossos filhos, mas também para quem não tinha a mesma chance. Começamos no quintal de uma igreja batista comandada por um pastor que tinha um filho com TEA. Eram 12 crianças, tudo de graça.
Como vocês arrecadavam recursos para pagar o atendimento?
Com bingos e eventos beneficentes. Alugamos uma casa, já em 1986, na Rua do Paraíso. Foi quando nossos filhos foram para lá, depois de terem sido expulsos da escolinha que estavam. Naquela época, o ABA ainda não era reconhecido. O que tinha era um kit desenvolvido pela Universidade da Carolina do Norte. E nós fomos atrás. Em 1988, eu e a Ana Maria de Mello, outra fundadora da AMA, embarcamos para a Europa para visitar centros de autismo. Não éramos médicas, mas conseguimos fazer visitas técnicas para ver tudo com os olhos bem abertos.
Escola e residência trazem autonomia para jovens e adultos com TEA
E depois fizeram o quê?
Voltamos com a ideia de comprar um sítio para criar uma residência e uma escolinha. Achamos um imóvel em Parelheiros (extremo da zona sul de São Paulo), onde hoje são atendidas cerca de cem pessoas, entre crianças, jovens e adultos. Meu filho mora lá. Tem 46 anos agora.
A AMA tem parceria com o poder público?
Sim, viramos referência e hoje temos essa parceria. Mas foi uma grande luta em busca de atendimento de qualidade e para todos. O triste é que todo esse tempo depois ainda não temos uma estrutura de acordo com a demanda. E lei é o que não falta. O que falta é os governantes começarem a fazer o que tem de ser feito, como centros de referência, terapia e residências.
Essa é uma frustração para a senhora? Saber que 40 anos depois a rede ainda não é suficiente?
Acho que, 40 anos depois, era para tudo estar mais avançado, né? Cientificamente, acho até que alcançamos um patamar muito bom. Hoje se sabe exatamente como deve ser o atendimento. O problema é que praticamente só as pessoas com planos de saúde conseguem os serviços e mesmo assim com muita dificuldade. No nosso caso, temos convênio, mas vivemos de doações e dos recursos da Nota Fiscal Paulista.
Hoje com 46 anos, filho de Marisa mora sozinho e segue aprendendo
Só os repasses públicos não bastam?
Não. Primeiro porque os valores nunca são atualizados e depois porque eles cobrem gastos específicos. Não cobrem consertos, por exemplo, ou a capacitação dos funcionários, que precisa ser constante. O tratamento para autismo é caríssimo porque exige que tudo seja individualizado. É como fazemos, independentemente da idade. Temos um plano educacional para cada um dos nossos atendidos que é revisto a cada seis meses. Isso tudo é necessário porque nosso objetivo não é dar banho, cuidar e alimentar. Ao menos não só isso. É fazer com que cada um deles se desenvolva, cresça.
Como está o Renato hoje?
Está bem. É um homem, mas que ainda precisa de auxílio nas atividades diárias. Tenho 76 anos, perdi meu marido em 2018 e hoje tenho de programar a minha velhice e a dele também, né? Porque ele está neste mundo! E entende as coisas. Recentemente, eu precisei ser internada e ele soube. Ficou agitado, mas continua aprendendo. E eu também. Sei mexer no celular e aprendi até a fazer reunião online. É isso que vale, seguir aprendendo.
Escrito por Teia.Work
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Acessos:
Camila Santos de Oliveira
Psicóloga formada pela Universidade de Mogi das Cruzes, com treinamento de Aplicadores em ABA pelo CBI of Miami, capacitação de Terapia ABA pela Academia do Autismo e curso de Supporting and Engaging Pleope with Autism pela Swinburne University of Technology.
Muito obrigado por esse post tão bem elaborado. Foi muito informativo!