A temporada final de Atypical
Série com protagonista autista chega ao fim com história sobre como descobrir os próprios sonhos e lidar com os desafios de sua realização
Adeus, Sam. A quarta e última temporada de Atypical chegou à Netflix contando as aventuras do protagonista autista Sam Gardner que, desta vez, decide realizar o sonho de ir à Antártida. Este é apenas um dos pontos relativos ao ganho de autonomia do personagem, que incluem transformações na sua relação com o melhor amigo Zahid, a vivência da sexualidade ao lado da namorada Paige e, mais uma vez, as tensões com a mãe superprotetora Elsa.
Sam não ocupa sozinho os holofotes desta temporada. Os conflitos em torno da sexualidade da irmã Casey ganham ainda mais destaque e contribuem para ampliar as discussões da série sem restringi-la aos desafios do espectro. Ela não sabe como contar ao pai sobre seu namoro com a também atleta Izzie e não consegue se identificar com o grupo de gênero e sexualidade da escola. Além disso, precisa aprender a lidar com a pressão excessiva de ser a melhor corredora de um colégio onde não gosta de estudar, mas continua matriculada para garantir uma bolsa em uma faculdade de ponta.
Na despedida da série, o ponto de encontro entre os personagens, sejam autistas ou não, está no autoconhecimento e na compreensão de seus limites e possibilidades.
Assim como Sam e Caisey, outros personagens também começam a se reconhecer e compreender o que lhes traz entusiasmo e realização. Paige tenta encontrar um novo caminho profissional após repetidas frustrações em seu trabalho numa lanchonete em que precisa de fantasiar constantemente de batata. Zahid enfrenta um relacionamento amoroso frustrante, lida com questões de saúde e aos poucos deixa para trás a masculinidade tóxica das frequentes piadas de cunho sexual. Para Elsa e Doug, pais de Sam, o desafio é acreditar que o filho pode desenvolver autonomia suficiente para conquistar o que deseja.
Última temporada deixa claro que o autismo em si não é único aspecto importante da vida de um autista
A questão da autonomia é uma constante na vida de pessoas com autismo. No caso da série, a família de Sam demonstra carinho e respeito pouco vistos no dia a dia de uma família comum, conforme relatos do episódio #183 do podcast Introvertendo, produzido por autistas. Mas é justamente o excesso de zelo da mãe, Elsa, que incomoda Sam. Para o pai, Doug, que lida com uma perda dolorida nesta temporada, o desafio é manter o equilíbrio entre deixar que Sam se desenvolva e oferecer o apoio que ele ainda necessita, como quando decide finalmente ajudar o filho a montar uma barraca de acampamento.
Aprender a montar uma barraca será essencial para o novo plano de Sam, que é visitar a Antártida. Ele tem hiperfoco em pinguins, um quarto todo decorado com a temática glacial e um pinguim de estimação no aquário da cidade. A ideia da viagem vem justamente quando, pela primeira vez, consegue ficar frente a frente com o bicho, que acompanha à distância desde que ainda era um ovo. Para financiar a viagem, o apoio de seu núcleo de amigos autistas faz toda diferença, especialmente a da arrojada Sid, que incentiva Sam a ganhar dinheiro com seus desenhos. O núcleo é formado por atores com autismo, uma demanda dos fãs que foi atendida pelos realizadores.
A relação de Sam com a faculdade também entra em xeque. Ele corre o risco de ficar de recuperação e precisa recorrer a uma professora nada acolhedora para reverter a situação. Ainda há outras questões que permeiam a rotina de Sam.
“O autismo, ele acaba não sendo o tema principal na vida, mesmo de uma pessoa autista. Você ainda tem que conviver com sua carreira, com sua família”, conta o podcaster Paulo Alarcón, no episódio do Introvertendo sobre a série. “O autismo em si é apenas uma parte da nossa personalidade. Tanto que nós somos muito diferentes, porque a gente é composto de muitos aspectos diferentes, a nossa vida é bem mais do que só o autismo”, complementa a também podcaster Thaís Mösken, no mesmo programa.
Produções sobre autismo ajudam a construir um dia a dia menos capacitista
A produção cultural sobre autismo pode contribuir para reduzir o estigma em torno dos autistas e seus familiares, aumentar a inclusão e também para gerar identificação na comunidade autista. No caso da influenciadora digital Tabata Cristine, assistir a Atypical fez com que conseguisse se entender como autista e buscasse o diagnóstico.
“Quando comecei a terapia, eu tinha o diagnóstico de transtorno bipolar. Apesar de isso não fazer sentido para mim, eu não sabia explicar para a psicóloga as minhas questões. Foi quando vi o Sam e me achei parecida com ele. Levei as questões para a terapia e a gente chegou ao meu diagnóstico”, conta ela. “Não tem nem como expressar em palavras como Atypical mudou a minha vida”, contou a designer de 31 anos em entrevista ao Estadão.
A conscientização gerada por obras que abordam o autismo passa também por diminuir o capacitismo, que é o preconceito direcionado às pessoas com deficiência – os autistas são oficialmente considerados deficientes no Brasil desde a aprovação da Lei Berenice Piana. O combate ao capacitismo no dia a dia envolve se expor a influenciadores da comunidade autista – mães e pais também, mas prioritariamente, os próprios autistas– além de livros autobiográficos, livros infantis, ficções e não ficções, séries de tv, comédias de stand up, filmes, desenhos animados ou tirinhas.
Ciclo de quatro temporadas da série termina de forma leve e inspiradora
A base do pensamento e do comportamento capacitista é a ideia de que pessoas com deficiências são incapazes, por não atenderem a um padrão corporal ideal – não apenas físico, mas também neurológico. Assim, quem não tem possibilidade de se enquadrar neste suposto padrão, não pode participar das atividades sociais. E nesta quarta temporada de Atypical, Sam vai além do que se espera até mesmo para uma pessoa dentro dos padrões.
“Estou muito feliz porque é realmente muito legal ver alguém no espectro fazendo o que Sam fez no final da série”, afirmou a diretora Robia Rashid à revista Variety. “Toda esta temporada é sobre ele superar suas próprias expectativas em muitos aspectos. A ideia de potencial e de onde seus sonhos podem te levar, e Sam perceber que isso é possível para ele, foi realmente algo incrível para nós. Esse foi o ponto de partida desta temporada. ”
As filmagens ocorreram em meio à pandemia, entre janeiro e março deste ano. Nessa época, os Estados Unidos começavam a ganhar força no combate à doença e vislumbrar a realidade de uma vacinação em massa, ainda com a manutenção dos protocolos de prevenção.
Neste contexto, conta Rashid, a equipe precisou trabalhar “três vezes mais duro” na despedida da série. Eles tiveram de usar EPI (Equipamento de Proteção Individual) completo durante as gravações, que duravam cerca de 14 horas diárias. “Espero que esta temporada seja o abraço caloroso que cada um de nós merece depois do ano que acabamos de ter”, disse a diretora.
A diretora cumpre o prometido, especialmente quando resgatamos a fala de apresentação de Sam, um desabafo que abre o primeiro episódio da série, e comparamos com a cena final.
“Eu sou um esquisito, é o que todos dizem. Às vezes não entendo o que os outros querem dizer e acabo me sentindo só, mesmo com outros ao meu redor”, lamenta o personagem, na fala de abertura de Atypical. Ele continua: “Só consigo me sentar e mexer os dedos, que é meu comportamento auto estimulante. Eu bato com uma caneta em um elástico com uma determinada frequência. E penso no que nunca poderei fazer, como pesquisar pinguins na Antártida ou ter uma namorada.”
O tenso e orgulhoso sorriso que encerra a temporada final conclui com leveza um ciclo inspirador.
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