Uma Advogada Extraordinária e o autismo – parte 2: destrinchando o TEA
Protagonista da série tem características comuns ao autismo, como ecolalia e estereotipia; entenda cada uma
Na primeira parte do nosso texto sobre a série Uma Advogada Extraordinária (leia aqui), falamos um pouco sobre alguns aspectos do Transtorno do Espectro Autista (TEA) que a série nos mostra.
Aqui, vamos destrinchar melhor os aspectos do TEA e ligar a série com outros textos publicados neste blog.
Como desconfiar que alguém tem TEA?
A primeira cena da série mostra Woo Young Woo ainda criança em um consultório médico com o seu pai. O médico pergunta: “Young-Woo tem cinco anos e ainda não fala?”.
Vemos aqui a dificuldade na comunicação que a personagem possui desde o início, marcada pela inexistência de comunicação verbal.
Personagem é apresentada como uma criança que, além de não verbal, não troca olhares, tem estereotipias e interesse restrito
Nesta primeira cena, o pai também diz a ela “olhe aqui para o papai” e a protagonista não olha. Esta é uma das características do transtorno: a pessoa com autismo tem muita dificuldade em fazer contato visual. Em outras partes da série, Young Woo, já adulta, deixa claro que olhar no olho é algo muito difícil para ela.
Outro destaque desta primeira cena é que a protagonista, ainda criança, olha para uma baleia. Isso nos mostra, desde o início da série, sobre o interesse restrito que ela possui. Interesse restrito é uma das condições que podem fazer parte do TEA.
Enquanto Young-Woo olha para as baleias, ela também balança o seu corpo de um lado para o outro. Aqui vemos outra situação que pode estar presente no transtorno: as estereotipias.
Mães e pais devem conversar com o pediatra caso o desenvolvimento da criança não corresponda ao esperado
Neste contexto, o médico que está consultando a personagem nesta cena, olha para o pai e diz “nós precisamos investigar, mas parece que a Young-Woo é autista”.
Cada fase do desenvolvimento segue uma sequência de etapas e há uma idade esperada para cada uma delas. Por isso, antes de ter em mente quais são as primeiras alterações que podem repercutir no desenvolvimento de uma criança por conta do TEA, precisamos entender o que seria um desenvolvimento normal esperado.
Caso a criança não responda de acordo com as etapas do desenvolvimento típico de uma criança, a orientação é conversar com o pediatra. Após a avaliação do pediatra, pode ser sugerida uma avaliação conjunta com o psicólogo ou o encaminhamento para um neuropediatra ou psiquiatra infantil.
Testes como o M-Chat ajudam a avaliar o desenvolvimento de crianças entre 16 e 30 meses
Há também testes para triagem que podem ser aplicados na consulta com o pediatra. O mais usado é o M-Chat. Ele é o instrumento de identificação precoce do TEA, recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria.
O teste é composto por 23 questões do tipo sim/não, que devem ser respondidas pelos pais de crianças entre 16 e 30 meses de idade que estejam acompanhando o filho(a) em uma consulta pediátrica.
A versão atualizada do protocolo (M-CHAT-R/F) conta uma segunda parte, a ‘Entrevista de Seguimento’, que ajuda a afinar a avaliação. Esta versão atualizada está sendo validada no Brasil (saiba mais aqui).
Sinais do autismo se manifestam já no início da infância; diagnóstico é definido pelo DSM-5
Quais são os critérios diagnósticos do TEA?
Primordialmente, o diagnóstico do TEA segue o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, o DSM, que está em sua quinta edição. A versão mais atual, o DSM-5, foi o primeiro documento oficial a redefinir o diagnóstico do autismo, criando o conceito de Transtorno do Espectro Autista.
A definição do diagnóstico único veio após muita discussão entre pesquisadores, médicos e cuidadores de que diversos distúrbios (como o Autismo de Alto Funcionamento, Autismo Clássico, Autismo Infantil, Autismo Atípico, Síndrome de Asperger, Transtorno Global do Desenvolvimento sem outra especificação e Transtorno Desintegrativo da Infância) na verdade compartilhavam sintomas e se diferenciam apenas pela intensidade com que estes traços se apresentavam em cada pessoa.
Em 2013, o DSM estabeleceu que uma pessoa faz parte do espectro autista quando tem dificuldades na comunicação social e na interação social e comportamentos restritivos, ambos desde o início da infância e desde que a criança tenha estímulos ao seu redor.
Expressão Síndrome de Asperger está desatualizada; não se trata mais de um diagnóstico específico, mas foi englobada no autismo
A protagonista da série possui a Síndrome de Asperger? Não.
É bem comum ouvir falar na Síndrome de Asperger. Alguns falam como se ela fosse um transtorno em separado, enquanto outros a relacionam ao TEA.
Como vimos anteriormente, desde 2013, no DSM-5, a Síndrome de Asperger faz parte do Transtorno do Espectro Autista. No DSM-4, as principais diferenças entre autismo e Síndrome de Asperger eram a intensidade do atraso que afetaria o indivíduo.
Como a Síndrome de Asperger apresentava sintomas mais leves, o diagnóstico costumava ser mais tardio que do autismo. Geralmente, notava-se que a criança não interagia do modo esperado apenas na fase escolar. Neste mesmo momento, também ficavam mais claros os interesses restritos que são mais comuns entre pessoas com Asperger. Por exemplo: na série, o interesse restrito de nossa personagem são as baleias e o modo de vida delas. Por isso, Young-woo gosta de fazer associações cotidianas e profissionais com baleias.
Portanto, o que a personagem tem hoje já não é classificado como Síndrome de Asperger, mas Transtorno do Espectro Autista de nível 1, ou de baixo grau de suporte —popularmente conhecido como autismo leve.
Ecolalia é característica do autismo e pode ser classificada como tardia ou imediata
O que é ecolalia e estereotipia?
Quando o assunto é linguagem, notamos um desenvolvimento atípico em pessoas com autismo. É comum existir a chamada ecolalia, uma característica intrigante do TEA.
A ecolalia pode ser definida como “uma repetição em eco da fala” – uma repetição de sílabas, palavras ou frases já ouvidas. O autismo é a principal síndrome desencadeante da ecolalia.
A repetição que caracteriza a ecolalia é dividida em duas categorias, de acordo com os períodos de tempo que levam para acontecer. Se ocorre logo após o fim de uma frase, é considerada “imediata”, mas se leva um intervalo de tempo significativamente maior, chama-se “tardia”.
“Catraca, caneca, casaca, cômico e careca”: frase representa estereotipia da protagonista
Uma imagem também muito associada ao autismo é a de um indivíduo que se balança para frente e para trás sem nenhum motivo aparente, como a personagem mostra na série, principalmente em sua infância.
O que pode parecer sem sentido para as pessoas neurotípicas (que não possuem transtornos mentais), é, na verdade, um comportamento que faz parte da vida no espectro autista, chamado de estereotipia. Este é o termo médico para ações repetitivas ou ritualísticas vindas do movimento, da postura ou da fala.
Há uma frase típica da personagem, que ela diz todas as vezes que se apresenta: “Meu nome é Woo Young Woo, não importa a ordem que for lido, ele ainda será Woo Young Woo. Como catraca, caneca, casaca, cômico e careca”.
Esta frase nos mostra tanto uma ecolalia tardia (que não é repetida no exato momento que foi mostrada, e sim memorizada para dizer após), como também uma estereotipia.
Bárbara Bertaglia
Médica residente na pediatria da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora na área de Transtorno do Espectro Autista e membro da equipe Autismo e Realidade desde 2019
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