6 questões básicas para compreender o autismo
Neuropsicóloga Joana Portolese fala sobre intervenção precoce, inclusão escolar, diversidade e capacitismo
Transtorno do Espectro Autista (TEA) é o termo usado para diagnosticar o autismo. A partir do momento em que uma família recebe este diagnóstico, ganha a oportunidade de proporcionar ao autista o atendimento adequado que criará chances de ampliar seu autoconhecimento e o desenvolvimento de suas potencialidades.
Em 2000, estimava-se que uma a cada 150 crianças eram autistas, segundo o CDC (Center for Disease Control, agência norte-americana de saúde). Os dados mais recentes, divulgados em 2021, apontam que a estimativa passou para uma a cada 44.
Sem detecção precoce, autistas acumulam diagnósticos equivocados ao longo da vida
Há o que se chama de uma geração perdida de adultos que não tiveram acesso ao diagnóstico na infância. Em entrevista ao blog, Tiago Abreu, Renata Simões e Lucas Pontes, por exemplo, relataram alívio e uma profunda autocompreensão a partir do momento em que, enfim, se entenderam autistas após uma trajetória de desgastes. Já em casos como o de Priscila Peres, o indivíduo passa por uma lista de diagnósticos equivocados até conseguir chegar ao laudo correto de TEA.
A detecção do autismo já na infância permite que os autistas tenham mais consciência de quem são e maior segurança de suas necessidades, além de acesso a direitos garantidos por lei.
Atuar na direção da intervenção precoce favorece não só a saúde mental da criança, mas compreensão de toda a sociedade sobre o transtorno
O acesso ao diagnóstico e à intervenção precoce estão entre as seis questões básicas sobre autismo abordadas pela neuropsicóloga Joana Portolese, coordenadora do Programa do Transtorno do Espectro Autista (Protea) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em apresentação no 6º Congresso Internacional Sabará-PENSI de Saúde Infantil.
Confira os destaques:
1- A importância da intervenção precoce
Joana afirma que, quando falamos de intervenção precoce em autistas, “estamos pensando na criança em aspectos clínicos, mas também no neurodesenvolvimento”. Quanto mais cedo a intervenção adequada é recebida, melhor o prognóstico da criança e menor a carga de cuidados familiar e social gerada pelo transtorno.
É possível diagnosticar crianças com autismo a partir dos 16 meses ou até menos, mas a idade média ainda está em torno de quatro anos.
Cuidados com criança autista impactam entendimento das pessoas sobre neurodiversidade
Os cuidados na observação do comportamento e na busca por diagnóstico e intervenção precoce da criança autista não só favorecem seu desenvolvimento como também o entendimento de todos ao seu redor sobre o transtorno e suas peculiaridades.
“Trabalhar na prevenção e na intervenção precoce é fundamental para criar caminhos na aprendizagem, no desenvolvimento de comportamentos que ajudam na saúde mental, além da compreensão da sociedade sobre neurodiversidade”, afirma Joana.
A neurodiversidade é um conceito que abrange todas as composições neurológicas humanas, sejam elas típicas ou atípicas – caso das pessoas com autismo. O olhar neurodiverso nos permite compreender os transtornos de neurodesenvolvimento não como algo fora do comum ou que precise de cura, mas como parte da imensa variedade de formações cerebrais naturais possíveis entre os seres humanos.
É a ideia de neurodiversidade que nos ajuda a compreender que o autismo não tem cura. O autismo é uma condição – entre tantas outras – com as quais alguns seres humanos nascem e que, por conta de suas especificidades, demanda acompanhamento especializado para que a pessoa, como qualquer outra, possa se desenvolver de forma plena dentro de suas potencialidades.
Aprender a detectar as primeiras manifestações do autismo é essencial para a intervenção precoce
2 – Primeiros sinais
Se o diagnóstico e a intervenção precoce são tão importantes, como saber então quando é o momento de procurar um médico para saber se uma criança tem ou não o transtorno? Neste ponto, a observação de mães, pais, cuidadores e outras pessoas que convivem com a criança é essencial.
“Quando falamos com crianças com necessidades específicas, como autismo, falamos sobre os primeiros sinais. As pessoas que estão o tempo todo com elas são a mãe e o pai”, diz Joana.
Não há exames clínicos capazes de identificar o transtorno. Após os familiares ou cuidadores apontarem a suspeita, é a vez de profissionais de saúde se dedicarem à observação dos primeiros sinais.
Marcos de desenvolvimento infantil ajudam a nortear mães e pais que suspeitam de autismo em uma criança
Existe uma grande variedade de manifestações do autismo, mas há casos em que os primeiros sinais podem começar a ser percebidos já nos primeiros meses de vida.
Aos seis meses, por exemplo, há casos em que é possível perceber que a atenção visual da criança é atípica, com pouco ou nenhum contato com o olhar e com uma preferência por fixá-lo em alvos muito estimulantes – cheios de cores ou movimentos.
Uma referência que pode ajudar mães, pais e outros responsáveis é observar a evolução da criança a partir dos marcos de desenvolvimento infantil – que definem o que um bebê típico, em geral, costuma fazer em cada idade.
“No autismo, você consegue observar sinais muito precocemente, como não olhar nos olhos, não responder aos chamados, não fazer imitações, sorrisos. A mãe na amamentação inclusive já consegue perceber, e é importante entrar logo com a estimulação precoce. Isso é fundamental, aproveitar a neuroplasticidade cerebral, para que possamos ter mudanças nessas rotas para um desenvolvimento melhor. Desta forma, conseguimos ter ganhos na atenção da criança, na linguagem e na comunicação social. Isso tudo melhora a qualidade de vida da criança e da família.”
Uma cartilha elaborada pelo CDC, com tradução em português, está disponível neste link e pode ajudar as famílias neste processo. O acompanhamento dos marcos de desenvolvimento, a identificação dos sintomas e a procura rápida por um profissional facilitam muito no processo de avaliação e desenvolvimento de um tratamento.
Autismo se manifesta de múltiplas formas, com intensidades e comorbidades diferentes em cada um
3 – Prevalência e diversidade
O tabu em torno do autismo vem diminuindo à medida que avançam o acesso ao diagnóstico, as produções culturais em que autistas são representados e também o entendimento do conceito de neurodiversidade.
“O autismo é muito comum, temos uma para 44 crianças com autismo nos EUA, uma a cada 132 pessoas no mundo”, diz Joana. “Estamos falando de um assunto que afeta a todos nós, e é importante que consigamos entender isso de forma precoce. Esse aprendizado ajuda na autonomia dessas crianças e famílias.”
O aumento da prevalência está ligado também ao entendimento da diversidade de manifestações do transtorno – daí vem o termo espectro, a letra E da sigla TEA. Quando se afirma que o autismo é um espectro, se faz referência à sua ampla variedade de manifestações.
Medicina considera atualmente, em termos diagnósticos, três níveis diferentes de autismo
Oficialmente, são considerados três níveis de autismo, sendo autistas de nível 1 aqueles que precisam de menos suporte para tarefas cotidianas e questões psicoemocionais e os de nível 3, aqueles que demandam mais apoio. Ainda assim, a variedade é imensa, porque o autismo pode manifestar uma infinidade de comorbidades e também estar associado a diferentes síndromes – como a de Down, por exemplo.
“Quando falamos de autismo, é um grupo muito heterogêneo, cada criança tem suas necessidades. A maioria das crianças tem prejuízo na comunicação, comportamentos restritos e estereotipados, mas em alguns casos são leves, então ele fica mais fácil de perceber com a entrada na escola”, conta Joana.
Os casos conhecidos popularmente como leves são tecnicamente classificados como de nível 1 de suporte. Nestes casos, mais especificamente entre mulheres, é comum que os autistas consigam disfarçar as manifestações do transtorno para serem aceitos e evitarem a exclusão social.
“Muitos diagnósticos acontecem na vida adulta, porque a pessoa consegue aprender estratégias para se adequar, mas sempre é difícil. E também são muito comuns as comorbidades, como transtorno de déficit de atenção, ansiedade e depressão”, conta Joana.
Variedade de manifestações e transtornos associados exigem acompanhamento por equipe de profissionais
4 – Acompanhamento multidisciplinar
A diversidade de manifestações do transtorno exige que o acompanhamento do autista seja feito por uma equipe multidisciplinar, não envolvendo apenas um médico, mas também diversos profissionais de saúde. Em casos de autistas não verbais, por exemplo, é comum a presença de um fonoaudiólogo para ajudar no desenvolvimento da fala. O grupo pode, inclusive, incluir profissionais especializados em musicoterapia ou equoterapia, por exemplo.
“São questões a serem sempre vistas ao longo do tempo, para pensar no foco do tratamento. Em alguns casos, existe tratamento medicamentoso, mas em geral é a intervenção com a equipe multidisciplinar com fono, psicopedagogo, terapeuta comportamental, terapeuta ocupacional, educador físico, fisioterapeuta, e sem dúvida a parceria com a escola”, diz Joana.
Acolhimento das crianças autistas na escola também vai impactar sua inserção no mercado de trabalho
5 – Inclusão escolar
A inclusão escolar é um dos desafios para a inserção social e o desenvolvimento de autistas no Brasil. Doutor em educação e pai de autista, Lucelmo Lacerda afirmou em entrevista ao blog que ainda falta a implementação de técnicas com respaldo científico para o acompanhamento de estudantes autistas nas escolas brasileiras.
“Os autistas têm interesses específicos, e esse foco ajuda muito em atividades específicas. São mentes que contribuem muito positivamente para várias tarefas, e cada vez mais as políticas de inclusão são importantes. Precisamos desses autistas, eles podem contribuir até mais do que uma pessoa neurotípica. Temos muito a aprender com nossos autistas”, diz Joana.
Advogada e mãe de autista, Michela Caron conta que, na inserção escolar do seu filho, a prioridade sempre foi a busca por acolhimento e amparo emocional da criança por colegas e professores. “Criança infeliz não aprende”, afirma.
Joana lembra que o processo de inclusão escolar impacta inclusive as oportunidades do autista de tentar se inserir no mercado de trabalho. Atualmente, estima-se que, nos Estados Unidos, 85% dos autistas graduados estão desempregados.
“A inclusão escolar é importante, o conhecimento dos colegas sobre o autismo e da sociedade também. Essa criança é mais sensível a estímulos neurossensoriais, a mudanças… Quanto mais conhecemos sobre autismo, melhor lidamos com isso. Os autistas precisam ser contemplados em nossa sociedade, na escola e no mercado de trabalho”, diz Joana.
Filmes e séries ajudam a ampliar a visão da sociedade sobre o autismo e como o transtorno se manifesta
6- Preconceito
A produção cultural sobre autismo ao longo dos anos nos ajuda a mostrar como evoluiu o entendimento sobre transtorno.
Do final da década de 1980 até por volta de 2010, o personagem do filme Rain Man dominava o imaginário sobre o autismo. O protagonista, Raymond Babbit, é um adulto autista com Síndrome de Savant, que alia uma memória poderosíssima e genialidade nos cálculos com profunda dificuldade de interação socioemocional. O personagem consolidou a falsa ideia de que todo autista é um gênio socialmente inadequado.
A partir da década de 2010, há um maior entendimento do conceito de neurodiversidade e da variedade do autismo. Hoje é mais comum encontrar quem saiba que Rain Man é apenas um entre múltiplos exemplos. Isso se reflete nas produções culturais, que cada vez mais exploram também a diversidade de gênero e sexualidade. Entre as mais recentes, temos os protagonistas das séries “A Advogada Extraordinária”, “Everything Is Gonna Be Ok”, “As We See It”, “Atypical” e “The Good Doctor”, além do desenho animado “Pablo”, e sem falar nos livros escritos por mães, pais, autistas e pelos influenciadores digitais que atuam na conscientização do distúrbio.
“O que mudou nos últimos anos é que temos um conhecimento maior sobre o autismo”, comenta Joana. “É muito importante o papel do Autismo e Realidade, do PENSI, das famílias. Falamos muito mais nos últimos anos sobre autismo, e temos mais capacitação de profissionais para intervenção.”
Capacitismo é o nome da discriminação contra pessoas com deficiência, grupo do qual os autistas fazem parte
Toda essa transformação, da qual a indústria do entretenimento é apenas um dos exemplos, ajuda a ampliar o conhecimento sobre o autismo, combater o capacitismo e reforçar a defesa dos direitos dos autistas.
“Temos conhecimento maior, o diagnóstico costuma ser mais cedo, e os estigmas andam diminuindo. O preconceito existe, continua sendo um desafio, mas hoje, ao menos, todo mundo já ouviu falar de autismo. Quando falamos de intervenção de autismo, estamos falando em terapias comportamentais, e precisamos cada vez mais disso“, diz Joana.
Capacitismo é a discriminação voltada a pessoas com deficiência, grupo do qual as pessoas com autismo fazem parte. Os autistas foram reconhecidos juridicamente como pessoas com deficiência no Brasil a partir da aprovação da Lei Berenice Piana, em 2012. O capacitismo é considerado crime pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Escrito por Clarice Sá, Teia.Work
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